¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, julho 12, 2010
 
MINHA ESPANHA


Recebi não poucos mails me cumprimentando pela vitória da Espanha na Copa. São leitores que conhecem meu apreço pelo país. Mas se equivocam. Minha Espanha não é a do futebol. Por mais que a adore, nestes dias não gostaria de estar lá. Me sentiria em pleno Brasil. Quando viajo, gosto de sentir-me no estrangeiro, não em casa.

Minha Espanha, para começar, é a de Cervantes. Foi o primeiro contato que tive com o país. O Quixote, eu o li lá pelos quinze anos, na Biblioteca Muncipal de Dom Pedrito, e até hoje me comove a partida do herói do manco de Lepanto rumo a suas aventuras:

— Quem duvida de que lá para o futuro, quando sair à luz a verdadeira história dos meus famosos feitos, o sábio que os escrever há-de pôr, quando chegar à narração desta minha primeira aventura tão de madrugada, as seguintes frases: “Apenas tinha o rubicundo Apolo estendido pela face da ampla e espaçosa terra as doiradas melanias dos seus formosos cabelos, e apenas os pequenos e pintados passarinhos, com as suas farpadas línguas, tinham saudado, com doce e melíflua harmonia, a vinda da rosada aurora, que, deixando a branda cama do zeloso marido, pelas portas e varandas do horizonte manchego aos mortais se mostrava; quando o famoso cavaleiro D. Quixote de la Mancha, deixando as ociosas penas, se montou no seu famoso cavalo Rocinante e começou a caminhar pelo antigo e conhecido campo de Montiel (e era verdade, que por esse mesmo campo é que ele ia);” e continuou dizendo: “Ditosa idade e século ditoso, aquele em que hão-de sair à luz as minhas famigeradas façanhas dignas de gravar-se em bronze, esculpir-se em mármores, e pintar-se em painéis para lembrança de todas as idades!” Ó tu, sábio encantador (quem quer que sejas) a quem há-de tocar ser o cronista desta história, peço-te que te não esqueças do meu bom Rocinante, meu eterno companheiro em todos os caminhos e carreiras.

Cervantes começa rindo de seu herói e da literatura de sua época. O Quixote, costumo afirmar, é por um lado uma viagem à Espanha de quatro séculos atrás. É para quem gosta de Espanha e de viagens. Por outro lado, é para quem curte refinada ironia, vide esta evocação à dama de Toboso:

— Ó Princesa Dulcinéia, senhora deste cativo coração, muito agravo me fizestes em despedir-me e vedar-me com tão cruel rigor que aparecesse na vossa presença. Apraza-vos, senhora, lembrar-vos deste coração tão rendidamente vosso, que tantas mágoas padece por amor de vós.

Também me comove o Cervantes que, no prólogo a Novelas Ejemplares, lamenta seus dentes, ni menudos ni crecidos, porque no tiene sino seis y esos mal acondicionados y peor puestos, porque no tienen correspondencia los unos con los otros. Também glorifica sua mão perdida em Lepanto, herida que, aunque parece fea, él la tiene por hermosa, por haberla cobrado en la más memorable y alta ocasión que vieron los passados siglos ni esperan ver nos venideros.

Ali está o homem, mutilado pela vida mas inteiro e orgulhoso de seus feitos. Na batalha de Lepanto, lutando contra os turcos, foi ferido e perdeu os movimentos da mão esquerda. Durante cinco anos, foi escravo de um bei em Argel. Na Espanha, foi preso por questões relacionadas à cobrança de impostos. Morreu na miséria. Antes de morrer, ciente da grandeza de sua obra, Cervantes dirá de Cervantes:

Tú, que en la naval dura palestra
perdiste el movimiento de la mano
izquierda, para gloria de la diestra!


A palavra palestra, aqui, tem o sentido original grego: luta, batalha. Esta é a Espanha que adoro. Em minhas andanças pela Mancha, junto aos moinhos, sempre vi – juro que vi – Don Alonso Quijano de adarga em punho e lança em riste, uma bacia a guisa de elmo, montado em seu fiel Rocinante. É aquele momento em que um nó nos sufoca a garganta. Quem não vê o Quixote quando viaja pela Mancha jamais entenderá a Espanha.

Mas não só a de Cervantes. Adoro também a Espanha de Fray Luís de Leon, o granadino que se consagrou à Igreja, tendo ingressado no convento de Salamanca. Graduou-se em teologia em 1561 e se dedicou à cátedra das Sagradas Escrituras. Graças a seus conhecimentos das línguas orientais, traduziu ao espanhol o Cântico dos Cânticos. Melhor não traduzisse. A Inquisição proibia as traduções dos livros sagrados à língua vulgar. Foi condenado a cinco anos de prisão.

Teve sorte, escapou da fogueira. Fray Luís de Leon, em seu magistério, tinha o hábito de recapitular a cada aula o que fora explicado na anterior: "como decíamos ayer". Após cinco anos de cárcere, retomou sua cátedra. E seu bordão: "como decíamos ayer..." Na universidade de Salamanca, me sentei nos bancos toscos da sala de aula de Fray Luís, que são os mesmos há quinhentos anos.

Esta é a Espanha que me fascina. Como também me fascina a Espanha de Goya e Buñuel, de Quevedo e Arrabal, de Gaudi e Camilo José Cela. Das cazuelas e zarzuelas. Do flamenco e cante hondo. Das catedrais de Toledo e Santiago de Compostela. Dos abismos de Cuenca e Ronda. Dos vulcões de Tenerife e Lanzarote. De Madri e Barcelona. Das Ramblas e do Barrio Gotico. De El Oriente, Sobrino de Botín e Gijón. Dos cochinillos y lechales. Dos Riojas e Penedés. Dos chinchóns, orujos y manzanillas. Da Carmen.

Esta é minha Espanha. A do futebol, em nada me interessa.