¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, julho 13, 2010
 
QUANDO VOCÊ
CONSEGUIR VER
SUAS ORELHAS



Os jornalistas adoram denunciar corrupção. Fala-se de corrupção no Congresso, corrupção em fundos de pensão, corrupção em bancos, corrupção em estatais. O que jamais ouvi falar, na grande imprensa, é de corrupção universitária. Parece que as duas palavrinhas se repelem, como aqueles cachorrinhos de metal de minha infância, que jamais conseguiam cheirar o rabo um do outro. Fala-se muito em corrupção na universidade. Mas sempre da corrupção alheia. Jamais da própria.

A mais confortável corrupção hoje – costumo afirmar – é a corrupção universitária. Muito mais ampla e mais permanente que a corrupção no Congresso. Os coitadinhos dos deputados e senadores são denunciados por levar mulheres, amantes e prostitutas para uma ou duas semaninhas no Exterior. Bolsista do CNPq ou Capes fica quatro ou cinco anos nas mais prestigiosas capitais do Ocidente. Se voltar de mãos vazias, tudo bem. Se você tem vocação para a corrupção, deixe de lado a política. Os jornalistas caem em cima. Universidade é muito melhor. Jornalista algum denuncia a universidade.

Leio na Folha de São Paulo que entre 2008 e 2010, o TCU condenou 48 ex-bolsistas do CNPq e da Capes a restituir um total de R$ 19,6 milhões. São pesquisadores que não voltaram ao país após a conclusão de cursos no exterior pagos com dinheiro público. As duas instituições dizem que as irregularidades atingem menos de 1% das bolsas e vão de 1981 a 1998.

Oh! Não me digam, por favor, que 1998 para cá não houve mais bolsistas inadimplentes! Que providências mágicas foram tomadas nesse ano da graça que estancaram a sangria do Erário? No caso da Capes – continua o jornal – a relação de contas abrange 91 ex-bolsistas. Outros 316 são do CNPq. O valor dos prejuízos supera os R$ 100 milhões.

A Folha fala em irregularidades, em bolsistas fujões, em prejuízos. Jamais em corrupção. Chama de irregularidade o que é roubo. Chama de bolsistas fujões professores corruptos. Chama de prejuízo o que é calote.

Mas não falta juiz que diga que calote não é crime. Ainda no início deste ano, eu comentava sentença prolatada pelo juiz Ivorí Luis da Silva Scheffer, da 2ª Vara Federal Criminal de Florianópolis, que decidiu que descumprir condição de bolsa do CNPq não é crime. E determinou o arquivamento de investigação contra ex-bolsista do CNPq, que não cumpriu o compromisso de retornar ao Brasil e empregar o curso de doutorado concluído no exterior. Segundo o magistrado, que acolheu o parecer do Ministério Público Federal (MPF), a conduta não pode ser considerada crime de estelionato, mas somente inadimplência contratual.

Traduzamos do juridiquês ao português. O juiz está dizendo que dilapidar dinheiro público em proveito próprio não é crime. É uma tese. Todos os professores inadimplentes da UFSC – e são legião – vão adorar. Há uns bons trinta anos, denunciei esta corrupção nos jornais de Santa Catarina. Houve rebuliço na Reitoria, na maçonaria, no PT, a denúncia foi à Receita Federal, à Polícia Federal, ao Ministério Público... e deu em nada.

Em acórdão publicado em abril deste ano, o Tribunal de Contas da União diz que o propósito da concessão de bolsas no exterior "é a formação de pesquisadores", e não a "satisfação pessoal de determinado estudante". Os doutos magistrados, ao que tudo indica, precisaram de três décadas para chegar a esta brilhante conclusão.

Comentei também, na época, o caso da pesquisadora Ana Maria dos Santos Carmo, obrigada a devolver R$ 489 mil ao CNPq, por descumprir um compromisso firmado com a instituição. Nada menos que US$ 223 mil, ao câmbio de então. A estudante não retornou ao Brasil após concluir seus estudos de pós-doutorado nos Estados Unidos, em química de solos, custeados pelo conselho. Santos Carmo alegava a falta de emprego em sua área de trabalho. Até se dispunha a pagar o montante, desde que parcelados em US$ 100 mensais. Em apenas 2.230 meses, a dívida estaria quitada. Ou seja, em pouco mais de 185 anos, os cofres públicos seriam ressarcidos. Proposta generosa, não chega sequer a dois séculos. O CNPq não gostou e sugeriu à moça outro parcelamento, de US$ 860,36 mensais. Não levou. Nesses termos, a pesquisadora preferiu não pagar.

Se um bolsista, tendo concluído seu doutorado, recebe boa oferta de trabalho no Exterior, qual instância, humana ou divina, o obrigará a ressarcir a União? Serão expedidas cartas rogatórias? A União constituirá advogados no estrangeiro para a cobrança da dívida? O bolsista caloteiro terá seus bens executados no Exterior? Será pedida sua extradição? Qualquer destes procedimentos custará bem mais caro que o valor da bolsa.

Leitor me pergunta: será que algum desses bolsistas pagará o devido? Isto me lembra Stalin. Em 1936, na Espanha, Juan Negrín, ministro da Fazenda do governo Largo Caballero, raspou os cofres do país em troca de aviões, carros de combates, canhões, morteiros e metralhadoras russas. Ao celebrar com um banquete no Kremlin a chegada das 7.800 caixas com 65 quilos de ouro cada uma (três quartos das reservas espanholas), Stalin, evocando um ditado russo, comemorou: "Os espanhóis não voltarão a ver seu ouro, da mesma forma que ninguém pode ver as orelhas".

Quando você conseguir enxergar suas orelhas, a União verá de volta os cem milhões de reais roubados. Se você quiser optar pela corrupção, desista da política, da administração pública, do mundo financeiro. A imprensa cai em cima. Prefira a universidade. Jornalista algum denuncia a corrupção universitária.