¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

quinta-feira, julho 08, 2010
 
VISITA A FREUD *


Viena, 8 de maio

HAVIA DOIS MESES que eu comprara, em Londres, um lindo mármore negro da época helênica e que, segundo os arqueólogos, representa Narciso. Sabendo eu que Freud completara, ontem, setenta anos – pois nasceu a 6 de maio de 1856 – enviei-lhe a estátuas de presente, juntando uma carta de homenagem ao “descobridor do narcisismo”.
Esse presente, bem escolhido, valeu-me um convite do patriarca da Psicanálise. Volto, agora, de sua casa e quero, imediatamente, tomar nota do que há de essencial em sua palestra.

Pareceu-me um pouco abatido e melancólico.

- Festejar aniversários – disse-me – assemelha-se muito às comemorações e faz lembrar demais a morte.

Impressionei-me com o corte de sua boca: uma boca carnuda e sensual, com um tudo-nada de sátiro que, visivelmente, explica a teoria da libido. No entanto, mostrou-se contente, ao ver-me, e agradeceu-me, vivamente, a oferta do Narciso.

- Para mim, a sua visita constitui um grande consolo. O senhor não é um doente, nem um colega, nem um discípulo, nem um parente. Vivo, todo o ano, entre histéricos e obsedados, que me contam suas leviandades – quase sempre as mesmas. Entre médicos, que me invejam, quando não me desprezam, e com discípulos, que se dividem em papagaios crônicos e em ambiciosos cismáticos. Com o senhor, posso, afinal, falar livremente. Ensinei aos outros a virtude da confissão e nunca pude abrir, de todo, a minha alma. Escrevi uma pequena autobiografia; mas quase exclusivamente com fins de propaganda. E, se alguma vez me confessei, foi aos pedaços, no Traumdeutung. Ninguém conheceu ou adivinhou o verdadeiro segredo de minha obra. Tem o senhor alguma idéia sobre a Psicanálise?

Respondi que havia lido algumas traduções inglesas de suas obras e que, unicamente, para vê-lo, eu fora a Viena.

- Pensam todos – acrescentou ele – que me atenho ao caráter científico de minha obra e que meu principal objetivo é a cura das moléstias mentais. É um grandíssimo erro, que já dura largos anos e que eu não consegui desfazer. Sou um homem de ciência por necessidade, e não por vocação. A minha verdadeira natureza é de artista. O meu herói íntimo foi sempre Goethe, desde minha infância. Quisera, então chegar a ser um poeta e, durante toda minha vida, desejei escrever novelas. Todas as minhas aptidões, também reconhecidas pelos professores do Instituto, orientavam-me para a literatura. Mas, se o senhor levar em conta as condições em que, no último quarto do século passado, se achava a literatura na Áustria, compreenderá a minha perplexidade. A minha família era pobre e a poesia, conforme testemunhavam os contemporâneos célebres, rendia pouco ou muito tarde. Além do que, eu era judeu, o que me punha em condição de manifesta inferioridade numa monarquia anti-semita. O desterro e o mísero fim de Heine desalentavam-me. Sempre sob a influência de Goethe, escolhi as ciências da natureza. Entretanto, o meu temperamento continuava a ser romântico: em 1884, para, alguns dias antes, poder ver minha noiva, que estava longe de Viena, garatujei um trabalho sobre a coca e deixei que outros me arrebatassem a glória e os lucros da descoberta da cocaína como anestésico.

“Em 1885 e 1886, vivi em Paris. Em 1889, permaneci algum tempo em Nancy. Essas permanências na França exerceram em meu espírito uma influência decisiva. Não só pelo que aprendi de Charcot e de Bernheim, como também porque a vida literária na França era, naquele tempo, riquíssima e ardente. Em Paris, como bom romântico que era, passava horas inteiras nas torres da Notre Dame; mas, à noite, freqüentava os cafés do Bairro Latino e lia os livros mais em voga naqueles anos. A batalhas literária estava em pleno desenvolvimento. O Simbolismo levantava sua bandeira contra o Naturalismo. Ao predomínio de Flaubert e de Zola ia-se sustentando, entre os moços, o de Mallarmé e de Verlaine. Pouco tempo depois de chegar a Paris, apareceu o À Rebours, de Huysmans, discípulo de Zola e que passava para o decadentismo. E estava em Paris quando se publicou Jadis et Naguère, de Verlaine, e foram recolhidas as poesias de Mallarmé e as Illuminations, de Rimbaud. Não lhe presto estes esclarecimentos para alardear minha cultura, mas porque essas três escolas literárias – o Romantismo, morto havia pouco, o ameaçado Naturalismo e o nascente Simbolismo – foram as inspiradoras de meu trabalho ulterior.

“Literato por instinto e médico à força, comecei a idéia de transformar um ramo da medicina - a psiquiatria - em literatura. Fui e sou poeta sob a máscara de homem de ciência. A Psicanálise, outra coisa não é senão a transformação de uma vocação literária em termos psicológicos e patológicos.

“O primeiro impulso para a descoberta do meu método nasce, como era natural, do meu estimado Goethe. O senhor sabe que ele escreveu o Werther para livrar-se do mórbido íncubo de uma dor: para ele, a literatura era a cura. E em que consiste o meu método para a cura do histerismo senão em fazer o paciente contar tudo, para livrá-lo da obsessão? Nada mais fiz do que obrigar os meus doentes a agir como Goethe. A confissão e libertação, isto é, a cura. Os católicos já há muitos séculos o sabiam; mas Victor Hugo tinha-me ensinado que o poeta também é sacerdote e, assim, substitui, ousadamente, o confessor. Estava dado o primeiro passo.

“Bem depressa compreendi que as confissões dos meus doentes constituíam um precioso repositório de ‘documentos humanos’. Realizava eu, portanto, um trabalho idêntico ao de Zola. Desses documentos tirava ele as novelas; eu via-me obrigado a guardá-los para mim. A poesia decadente chamou-me, então, a atenção para a semelhança que há entre o sonho e a obra de arte e para a importância da linguagem simbólica. A Psicanálise nascer, não como dizem, das sugestões de Breuer ou dos vislumbres de Schopenhauer e de Nietzsche, e sim da transposição científica das escolas literárias da minha estima.

“Explicar-me-ei com mais clareza. O Romantismo que, recolhendo as tradições da poesia medieval, proclamara a primazia da paixão e reduzira toda paixão ao amor, sugeriu-me o concerto do sensualismo como centro da vida humana. Sob a influência dos novelistas naturalistas, dei do amor uma interpretação menos sentimental e mística; mas, era esse o princípio.

“O Naturalismo, e sobretudo Zola, acostumou-me a ver os lados mais repugnantes, porém mais comuns e gerais da vida humana; a sensualidade e a avidez sob a hipocrisia das belas maneiras; em suma, o animal no homem. E as minhas descobertas dos vergonhosos segredos, que o subconsciente oculta, nada mais são do que uma nova prova do despreocupado ato de acusação de Zola.

“Finalmente, o Simbolismo ensinou-me duas coisas: o valor dos sonhos, assimilados à obra poética, e o lugar que o símbolo e a ilusão ocupam na arte, isto é, no sonho manifestado. Foi, então, que empreendi meu grande livro sobre as interpretação dos sonhos, como reveladores do subconsciente; desse mesmo subconsciente que é a fonte de inspiração. Aprendi pelos símbolos que todo poeta deve criar sua linguagem e eu, de fato, criei o vocabulário simbólico dos sonhos, o idioma ‘onírico’.

“Para completar o quadro das minhas fontes literárias, acrescentei que os estudos clássicos – realizados por mim, como o primeiro da aula – sugeriram-me os mitos de Édipo e de Narciso. Com Platão, ensinaram-me que o estro, quer dizer o surgir do inconsciente, é o fundamento da vida espiritual. E, finalmente, com Artemídoro, ensinaram-me que toda fantasia tem seu signficsado recôndito.

“Que minha cultura é essencialmente literária demonstram-no, abundantemente, as minhas contínuas citações de Goethe, Grilparzer, Heine e outros poetas. A forma de meu espírito está inclinada para o ensaio, para o paradoxo, para o dramatismo, e nada tem da rigidez pedante e técnica do verdadeiro homem de ciência. Há uma prova irrefutável: em todos os países em que a Psicanálise penetrou, foi ela mais bem entendida e aplicada pelos escritores e pelos artistas do que pelos médicos. Por outro lado, os meus livros se assemelham muito mais a obras de imaginação do que a tratados de patologia. Os meus estudos sobre a vida cotidiana e sobre os movimentos do espírito são verdadeira e genuínas literatura, e em Totem e Tabu também me exercitei na novela histórica. O meu desejo mais antigo e tenaz seria escrever verdadeiras novelas: possuo um tesouro de material em primeira mão que faria a fortuna de cem novelistas. Mas, receio que agora seja muito tarde.

“Seja como for, soube, transpondo as dificuldades, vencer o meu destino e logrei o meu sonho: continuar a ser um literato, embora com aparências de médico. Em todos os grandes homens de ciência há o sopro da fantasia, mãe das intuições geniais; mas nenhum se propôs, como eu, a traduzir em teorias científicas as inspirações da literatura moderna. Na Psicanálise encontram-se e se compendiam, expressas em linguagem científica, as três maiores escolas literárias do século XIX: Heine, Zola e Mallarmé associam-se, em mim, sob o patrocínio do meu velho Goethe. Ninguém percebu este mistério, que está à vista. E não o revelaria a ninguém, se o senhor não tivesse tido a ótimas idéia de oferecer-me uma estátua de Narciso”.

Ao chegar a este ponto, a conversa tomou outro rumo: falamos na América, em Keyserling e, finalmente, nos vestidos das vienenses. Mas a única coisa que vale a pena ser consignada no papel é o que está escrito. Na ocasião de despedir-me de Freud, ele pediu-me que guardasse o segredo de sua confissão.

- Felizmente, o senhor não é escritor, nem jornalista, e estou certo de que não divulgará o meu segredo.

Tranqüilizei-o, e com sinceridade: estes apontamentos não são destinados à publicidade.

* Gog, de Giovanni Papini, tradução de Sousa Junior