¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, agosto 21, 2010
 
COELHO OBRIGATÓRIO


Essa agora! Leio na Folha de São Paulo que, a partir da próxima semana, 8.500 ônibus do Rio de Janeiro trarão estampadas em cartazes, colocados no vidro que separa o motorista dos viajantes, poesias clássicas da literatura brasileira. Não bastassem as escolas e universidades empurrarem goela abaixo a famosa literatura nacional, agora até os passageiros de coletivos terão de suportá-la. Segundo o jornal, "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias; "Círculo Vicioso", de Machado de Assis; "Ouvir Estrelas", de Olavo Bilac; "Pombas", de Raimundo Correia; "Suave Caminho", de Mário Pederneiras, e "Piedade", de Cruz e Sousa, são algumas das poesias selecionadas no programa.

O projeto Circulando Cultura, lançado ontem, é uma iniciativa da ABL (Academia Brasileira de Letras) e do Rio Ônibus, sindicato das empresas de ônibus da cidade. São 6,5 milhões de viagens por dia na região metropolitana. A previsão é que o projeto seja estendido para todo o Estado.

Quanto a oferecer condições suficientes para que o usuário leia confortavelmente o que bem lhe aprouver, nem pensar. Ler um poema espremido pela multidão e pendurado em ganchos deve ser um indizível momento estético. Vivi em países onde usar metrô ou ônibus são excelentes ocasiões para ler. Tanto na França como na Suécia, os vagões de metrô parecem salas de leitura. Em outros países por onde andei, observei o mesmo hábito. Vi inclusive jovens lendo partituras e vibrando com a música.

Certa vez, voltando de uma dessas viagens, fui visitar uma amiga em São Paulo. Ela morava a uma hora de ônibus do centro. Muni-me de dois ou três jornais para suportar a viagem. Santa ingenuidade. Entrei num ônibus lotado, usei uma mão para pendurar-me num gancho enquanto a outra segurava meus inúteis jornais. Ocasionalmente, faço viagens noturnas de ônibus para o Sul. Uma excelente oportunidade de leitura, direis. Nada disso. A iluminação não é suficiente para ler. Osman Lins, um dos raros bons escritores nacionais, chegou a fazer uma campanha para melhorar a iluminação nos ônibus. Para poder ler e não ficar olhando o vazio. Foi tido como louco.

Mas o problema nem é este e sim essa mania de empurrar literatura nacional. "Os passageiros podem ter melhores momentos na viagem ao ter acesso a grandes obras", afirmou o presidente da Rio Ônibus, Lellis Marcos Teixeira. Só existirão grandes obras no Brasil? Por que não poemas de Pessoa ou Poe, de Dante ou Carrol, de Bocage ou Aretino?

Há alguns anos, alguém me perguntou quais autores recomendo na literatura brasileira. Não me fiz de rogado: Platão, Cervantes, Dostoievski, Swift, Nietzsche, Orwell, Pessoa e por aí afora. Ora, direis, estes não são autores nacionais. A meu ver, são. Estão traduzidos, fazem parte do imaginário nacional, logo são tão brasileiros quanto Machado ou Rosa. Mesmo que não fossem, pertencem ao acervo universal e não temos o direito de ignorá-los. Por que não considerar Cervantes ou Balzac como escritores brasileiros? Tratam do ser humano e seus personagens invadem nosso dia-a-dia. Dom Quixote é mais conhecido no Brasil do que Brás Cubas, gerou inclusive um adjetivo, quixotesco, aliás presente em outras línguas de cultura. Balzac também. O português é a única língua que define a mulher de trinta anos como balzaquiana. Deu até samba: "Balzac acertou na pinta, mulher só depois dos trinta".

O projeto da ABL é simples: hoje os Machados e Bilacs, que fazem parte do cânone nacional. Amanhã os Nejares e Carpinejares da vida, Chico Buarque e Caetano Veloso, quem sabe Chitãozinho e Xororó, afinal música popular já passou a fazer parte de vestibulares. Não estamos longe disto. “Outra idéia do projeto é um concurso de poesias populares. Assim, os passageiros poderiam ver suas próprias criações circulando pela cidade”. Além dos chatos oficiais, os passageiros terão de aturar os novos chatos.

Quem sabe Paulo Coelho? Na mesma Folha, na coluna de Mônica Bergamo, leio que Paulo Coelho terá seus livros de maior sucesso lançados pela editora Benvirá junto com material didático, para que sejam adotados por professores em sala de aula. A idéia é que sejam desenvolvidos temas com os alunos: perseverança com O Alquimista, o valor da vida com Veronika Decide Morrer e as escolhas com O Demônio e a Srta. Prym.

Quando se fala em vinho ou uísque, a preferência recai sobre vinho ou uísque importados. O mesmo vale para carros ou aparelhos eletrônicos. Mas quando se trata da bendita literatura, ela tem de ser nacional. Ainda sentiremos saudades dos tempos em que os chatos obrigatórios eram Machado, Rosa e Clarice.