¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

sábado, agosto 07, 2010
 
KALOCAINA - XXV

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




Um sussurro perpassava a Casa de Polícia. Ninguém sabia nada, ninguém dizia nada definido, todos ouviam o boato como uma semi-respiração, ao se encontrarem nas escadas e corredores, sem testemunhas à vista: “O próprio Ministro de Polícia – Tuareg – ouviram falar – preso... Apenas um boato... Preso por subversão... Tsss...”
Que pensaria Karrek disto, perguntei-me, ele que estava tão próximo a Tuareg, e que pessoalmente estava tão ansioso por ver a nova lei promulgada? Estava sabendo disso? Não teria sido talvez ele...?

Como nada tinha a ver com os rumores, lancei-me ao trabalho.

Durante o almoço. Não mais evitei o olhar de Rissen. Se ele me perscrutava, seria em todo caso para prevenir o golpe. De resto, dominava-me um estranho sentimento de que ele não era verdadeiramente real. Aquele que se sentava na mesa e assoava nítida e sonoramente o nariz, era uma espécie de miragem – uma imagem relativamente inofensiva, refletida em um espelho –, de um princípio mau que eu não queria chamar à vida. Eu havia golpeado, e no momento seguinte o golpe atingiria... A imagem. E tentava convencer-me que era exatamente a mesma coisa.

A adormecida sensação de sonho só me abandonou na volta para casa. Meus pés se tornaram pesados, quando pensei que teria de rever Linda. Tinha uma noite livre à minha frente, e logo estaríamos a sós um com o outro, nós dois, face a face. Eu não sabia como suportaria isso.

Chegou o momento. Ela por certo o esperava. Hoje era ela quem ajeitava as cadeiras e mexia no rádio – mas nenhum de nós ouvia o programa, tampouco agora como antes.
Sentamo-nos por muito tempo silenciosos. Eu olhava furtivamente seu rosto – parecia agir em sua imobilidade. Ela continuou em silêncio. E se eu me tivesse enganado; se minhas apreensões pela manhã fossem verdadeiras?

– Tu denunciaste? – perguntei com voz grave.
Ela sacudiu a cabeça.
– Mas pretendes fazer isso?
– Não, Leo, não, não.

Voltou ao silêncio, e não existia pergunta que eu pudesse fazer. Eu não sabia como ficar. Por fim fechei os olhos e recostei-me na cadeira, resignado ante algo desconhecido, mas inevitável. Veio-me a lembrança um jovem que submetêramos à kalocaína – o que primeiro falou sobre as reuniões secretas da seita de loucos. Ele havia dito algo sobre o horror de calar-se, em como está indefeso e despido alguém em silêncio, e agora eu o entendia.
– Quero falar contigo – disse ela finalmente, com dificuldade – Tens de me ouvir. Queres?
– Sim, Linda, eu te magoei.

Um pequeno sorriso trêmulo em sua boca.

– Tu me abriste como se abre uma lata de conserva, pela força. Mas isto não basta. Entendo depois, que ou se morre de vergonha, ou se precisa continuar voluntariamente. Posso continuar? Queres um pouco mais de mim, Leo?
Eu não podia responder, nem mesmo explicar o que acontecia dentro de mim, pois parte alguma de meu corpo fazia outra coisa senão ouvir. Tenho por absolutamente certo que até então jamais havia ouvido em minha vida. O que eu antes chamava ouvir era algo diferente. Meus ouvidos então davam conta de sua função, meus pensamentos da sua, minha memória registrava tudo exemplarmente, e no entanto meu interesse estava em outro lugar; onde, não sei. Agora eu nada sabia senão o que ela contava, mergulhava nisso, eu era ela.

– Já sabes algo de mim, Leo. Sabes quanto sonhei em te matar. Hoje, que toda a vergonha e o medo estão distantes, pensei que poderia fazê-lo, mas agora vejo que não posso. Posso apenas ter sonhos desesperados. Mas acho que não é medo da punição, o que me impede. Talvez consiga explicar isto mais tarde. É sobre outra coisa que quero falar contigo. Quero falar das crianças – e do que descobri com elas. É longo. Nunca ousei dizer algo sobre isto. Vou começar pelo começo, com Ossu:

– Lembras quando eu estava grávida de Ossu? Lembras que todo o tempo foi evidente para nós que devia ser um menino? Não sei se tu apenas acompanhavas minha fantasia, mas pelo menos disseste que também acreditavas que seria um menino. Sabes, acho que eu ficaria terrivelmente ofendida se tivesse sido uma menina; eu sentiria isso como uma injustiça, eu que era uma grande cidadã-soldado tão leal, que até mesmo morreria alegremente se tivesse sido encontrado um meio que tornasse as mulheres desnecessárias. Sim, pois eu as concebo como um mal necessário, necessário ainda por muito tempo. Claro que sei que oficialmente somos consideradas valiosas ou quase tão valiosas quanto os homens, mas apenas em segunda mão, só porque podemos gerar novos homens, e novas mulheres, evidentemente, que por sua vez gerarão novos homens. E por mais que isto fira minha vaidade (sempre queremos ter um pequeno imenso valor) por mais que isto me ferisse, eu concordava em todo caso que não tinha lá muito valor. Mulheres não são tão úteis como os homens, disse para mim mesma, não têm a mesma força corporal, não levantam os mesmos pesos, não suportam tão bem uma chuva de bombas, seus nervos não têm a mesma eficiência num campo de batalha, são indubitavelmente piores guerreiros, piores cidadãos-soldados que os homens. São apenas um meio de produzir guerreiros. Que elas sejam oficialmente consideradas em tão alto grau, é apenas um artifício para que se sintam alegres e receptivas. Talvez chegue um tempo, acho, em que as mulheres sejam supérfluas, em que se possa utilizar seus ovários e jogar o resto no esgoto. Todo o Estado será então constituído então por homens, e não serão necessárias despesas com o sustento e educação das meninas. É um sentimento curiosamente vazio saber que se é apenas um depósito, necessário até segunda ordem, embora muito precioso. Pois bem, quando eu era honesta a ponto de admitir isto, não teria sido então uma decepção excessivamente grande, se pela primeira vez que eu procriasse, tivesse dado à luz algo que também era apenas um depósito? Mas não foi assim, Ossu felizmente era homem, quase cheguei a ver sentido em mim mesma. Tão leal eu era naquele tempo, Leo.

E continuou:

– Então eu o vi crescer e caminhar, e nesse mesmo período tive Maryl. Quando acabei de amamentá-la, passei a vê-la apenas pela manhã e à noite, antes de ir para meu trabalho e ao voltar para casa, mas isto não era tão estranho. Eu sabia com toda a minha convicção que Ossu pertencia ao Estado, que estava sendo educado todos os dias na creche para ser um futuro cidadão-soldado e que a mesma educação continuaria no acampamento infantil e mais tarde no juvenil. Abstração feita de sua herança genética que eu sabia ser importante, e em nosso caso tudo estava em ordem, tão longe quanto podíamos pesquisá-la e que de resto tampouco era “nossa” propriedade, pois provinha de outros cidadãos-soldados que nos precederam, era evidente para mim que seu futuro caráter dependeria de seus chefes na creche, nos acampamentos, dos exemplos e regras que norteavam sua educação. Mas não podia deixar de observar nele uma série de pequenos traços curiosos, que eu reconhecia serem teus e meus também. Observei seu modo de torcer o nariz e pensei: Curioso, eu fazia exatamente assim quando era pequena! Desta forma eu renascia em meu filho. Era um sentimento de orgulho: nele eu quase ressurgia como homem! Eu observei seu riso, que me lembrava muito o teu. Desta forma eu participava de tua infância. E seu modo de torcer a cabeça, tu sabes, e algo na conformação dos olhos... Não era nada difícil de entender, mas me dava um sentimento criminoso de direito de propriedade. “Vê-se que ele é nosso”, pensei, “filho”, acrescentei com a consciência, pois sabia que este sentimento não era de lealdade. De fato, não o era, mas existia. O pior é que se tornou cada vez mais intenso por ocasião de minha segunda gravidez. Acho que te lembras que o nascimento de Maryl foi difícil e tomou bastante tempo. Certamente é superstição, mas na ocasião eu já estava convencida, e não conseguia desembaraçar-me, deste pensamento, que isto dependia de que eu não desejava largá-la de mim. Quando nasceu Ossu, eu era ainda uma mãe totalmente voltada para o Estado. Quando nasceu Maryl, eu era uma egoísta, uma fêmea avara, que procriava para mim mesma e pensava ter direitos sobre o que gerava. A consciência me dizia que eu estava errada, que tais pensamentos não deviam ser pensados, mas nenhum sentimento de culpa ou vergonha conseguia eliminar esta avareza que despertara em mim. Se tenho tendências autoritárias, elas não são grandes, Leo, tens de concordar! Mas existem; surgiram depois do nascimento de Maryl. Nos rápidos momentos que Ossu estava em casa, eu decidia por ele, eu o dominava tanto quanto podia, apenas para sentir que ele ainda era meu. E ele obedecia, pois isto se aprende antes de mais nada nas creches, e eu sabia que tinha direito a isto por enquanto, pois fazia parte da vontade do Estado e da educação dos cidadãos-soldados. Mas isto era apenas um pretexto. Minha maneira de ser em relação a Ossu não era propriamente uma homenagem ao Estado. Era uma tentativa de exigir todo o meu direito de propriedade que poderia ser exigido durante o pouco tempo que ele estava em casa.

Não parecia efeito da kalocaína, mas era uma confissão sincera.

– Quando Maryl nasceu, até me surpreendi como estava tranquila de que fosse menina, e talvez não apenas tranquila: estava inclusive satisfeita. Ela não pertencia antes de mais nada ao Estado, como um menino pertenceria. Ela era mais minha, ela era mais eu, pois eu era mulher. Como descrever o que senti, depois de ter aceitado isto? Tu saber, Maryl é uma criança estranha. Ela não é tu, nem mesmo eu. É possível que algum antepassado tenha ressurgido em seu ser, não sei, isto se encontra muito longe no tempo. Ela era simplesmente Maryl. Parece tão simples, mas é misterioso. Ela já via as coisas e fatos de um outro modo quando ainda nem falava. E depois... Depois, tu sabes. Tu sabes, ela é ela. Notei que minha avara possessão se diluíra. Maryl não era minha. Ficava horas sentada ouvindo como cantava para si mesma, ou lia, ou fazia qualquer outra coisa, fantásticas histórias de sonho, que ela jamais aprendera na creche. Mas onde aprendera então? Histórias fantásticas não se transmitem geneticamente para emergir em gerações posteriores! Tinham sua própria melodia, e ela não as havia recebido de nós nem da creche. Entendes por que esta idéia deixou-me confusa e aterrorizada? Ela era Maryl. Não se parecia a ninguém. Não era um barro informe como eu ou tu, que o Estado podia modelar como bem entendesse. Não era minha propriedade, nem minha criação. Eu estava fascinada por minha filha de um modo novo, selvagem, estranho. Quando ela estava perto de mim, eu me tornava quieta e atenta.

Entendi então que Ossu também tinha algo distinto em si, embora já chegasse ao ponto de compreender que era melhor escondê-lo. Arrependi-me de ter sido tão possessiva em relação a ele, e finalmente o deixei em paz. Aquele tempo era cheio de dúvidas, tensões e vida. Então descobri que uma outra criança estava a caminho. Nada mais natural, mas para mim foi algo aterrador. Que eu estivesse com medo não é a expressão exata.l Não temia que algo me acontecesse com o parto ou algo semelhante.

Eu estava terrificada porque me pareceu ter compreendido o incompreensível pela primeira vez. Até então eu jamais soubera o que era gerar. Não mais me concebi como uma dispendiosa máquina de produção. E não mais era uma proprietária avarenta. Que era eu então? Não sei. Alguém que não tinha controle nem mesmo sobre o que aconteci, mas mesmo assim transportada quase ao êxtase porque isso acontecia em mim. Em mim vivia um ser, e já tinha traços, já tinha características particulares, e eu não podia modificá-lo... Eu era um galho que florescia sem anda saber de minha raiz ou caule, mas sentia a seiva brotando de profundezas desconhecidas...

Fez uma pausa e mudou para uma entonação mediativa
– Falei tanto, e mesmo assim não sei se me entendes. Quero dizer: se tu entendes que existe algo embaixo e atrás de nós. Que é criado em nós. Sei que não se deve dizer isso, pois é apenas o Estado que nos possui. Mas mesmo assim te digo isso. Não sendo assim, nada tem sentido.

Calou-se. Eu continuava mudo, embora tivesse vontade de gritar. Eis aqui tudo o que eu havia combatido, pensei como em um sonho. Tudo o que eu havia combatido, temido e sonhado.

Ela nada sabia dos loucos e de sua cidade deserta, e no entanto cairia sob a lei tão inevitavelmente quanto eles, pois sonhava com uma ligação que não ao Estado. E mais: eu também. Pois já não sentia esta outra ligação, anárquica e inelutável, entre mim e ela?

Eu tremia da cabeça aos pés. Queria dizer: sim, sim! Seria um alívio, como se um homem totalmente exaurido caísse no sono. Eu estava livre de uma ligação que me sufocava e salva para uma nova, evidente, simples, que enlevava mas não prendia.
Meus lábios lutavam com palavras que não existiam e não podiam ser ditas. Queria agir, fazer algo, quebrar tudo e construir novamente. Não existia mais mundo algum para mim, lugar algum onde habitar.

Fui até ela, ajoelhado no chão e deitei a cabeça em seus joelhos.
Não sei se alguma vez alguém já fez isto, ou se alguém o fará novamente um dia. Jamais ouvi falar nisto. Só sei que fui obrigado, e que isto continha tudo o que queria dizer e não podia.

Ela entendeu. Pôs a mão em minha cabeça. E assim ficamos por muito tempo.