¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

sexta-feira, agosto 13, 2010
 
KALOCAINA - XXX E ÚLTIMO

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo



Como eu nada mais podia supor senão que a Força Aérea tivesse treinamento noturno, gritei tão alto quanto pude, para sobrepor-me ao ruído:
– Estou doente, estou indo para o metrô. Larguem-me.
Ou eles não ouviram ou tinham outras ordens, pois não me soltaram. Depois de me examinarem e desarmarem – eu portava o uniforme policial-militar em razão da festa –, fui fortemente amarrado e transportado numa espécie de triciclo, que alguns homens montaram rapidamente com algumas peças leves, que pareciam ser especialmente concebidas para o transporte de prisioneiros. Fui ainda algemado com as mãos para trás, de forma não muito incômoda, mas sem possibilidade alguma de mover-me, quando um dos soldados gritou algo para seu companheiro da frente e partiu rapidamente.
Supus que involuntariamente eu havia sido feito prisioneiro nos exercícios simulados da Força Aérea e percebi que só restava resignar-me. De qualquer forma, mais cedo ou mais tarde eu chegaria onde queria.

Por onde rodávamos, o farol do veículo iluminava rapidamente um pequeno trecho do caminho à frente. Há pouco não se via nem se ouvir ser humano algum. Agora formigava de gente por todas as ruas, todas as praças e terraços, todos intensamente ocupados com um trabalho definido. Eu não podia deixar de admirar a organização deste gigantesco treinamento noturno. E quanto mais longe avançávamos, mais o trabalho progredia. Vi barreiras de arame farpado serem montadas (conseguiriam retirá-las até amanhã cedo, quando o povo se dirigisse ao trabalho?), vi longas mangueiras estendidas, recipientes os mais diversos sendo carregados para todos os lados, guardas vigiando as estações de metrô e os prédios residenciais. De quando em quando via um triciclo carregando alguém prisioneiro como eu, e perguntei-me aonde nos levariam.

Os triciclos pareciam reunir-se numa praça em frente à qual fora montada uma grande tenda, num terraço. Os prisioneiros levados para lá – uns vinte antes de mim – tinham as mãos livres mas os pés amarrados e foram conduzidos à tenda. Mal entrei, deparei-me com um prisioneiro que oferecia resistência e reclamava o tempo todo que ele, sendo vigia distrital, não poderia estar exposto a tais manobras. Quem cuidaria de suas obrigações em sua ausência? Como poderia justificá-la no dia seguinte a seu chefe? O ruído dos motores era nitidamente mais fraco dentro da tenda – ela era provida de um poderoso sistema antiacústico – de modo que se podia ouvir perfeitamente o que ele dizia, e pensei comigo mesmo que os soldados que o cercavam podiam ao menos dar-lhe uma resposta; quando subitamente ouvi dois outros soldados trocarem algumas palavras em um idioma totalmente estranho, do qual nada entendi. Não éramos absolutamente vítimas de um exercício noturno. Éramos prisioneiros do inimigo.

Até hoje não sei como tudo se desenrolou. Pode-se imaginar que o inimigo, lenta e metodicamente, tenha substituído um a um os tripulantes da Força Aérea por espiões até ter sob seu comando todos os aviões. Pode-se ainda imaginar um rastilho de revolta e traição, motivado por razões desconhecidas. As possibilidades eram muitas, todas fantásticas, e a única coisa certa era que não ocorrera luta aérea alguma, e tampouco vi lutas em terra. O ataque fora muito bem planejado.

Os prisioneiros esperavam em filas num compartimento externo da tenda e eram conduzidos um a um ao interior. Lá estavam um militar de alto posto com alguns tradutores e secretários em torno a si. Interrogaram-me bruscamente em meu próprio idioma sobre meu nome, profissão e grau na vida militar e civil. Um dos presentes curvou-se e disse algo tão baixo que nada entendi, mas tive um sobressalto ao ver seu rosto. Não era um de meus alunos? Eu não estava totalmente certo. O chefe olhou-me com ar de interesse.

– Então o senhor é um cientista químico? E fez uma importante descoberta? Quer comprar sua vida com ela? Quer entregar-nos sua descoberta?

Por muito tempo depois me perguntei por que havia respondido sim. Medo não era. Tive medo quase toda minha vida, fui covarde – que contém meu livro senão o relato de minha covardia! –, mas naquele momento eu nada temia. Em mim só havia lugar para uma decepção sem limites por não poder jamais chegar até aqueles que esperavam. Tampouco me passava pela cabeça que minha vida valeria a pena ser salva em tais circunstâncias. Prisioneiro ou cadáver, parecia-me ser exatamente a mesma coisa. Em ambos os casos meu caminho até os outros estava interrompido. Quando percebi mais tarde que não fora minha descoberta que me salvara, que minha vida seria poupada de qualquer forma, que um grande número de prisioneiros era um valioso ganho para o Estado vizinho pois a natalidade lá, tão reduzida quanto aqui, sofria as mesmas perdas com a Grande Guerra, não senti arrependimento algum, nada se modificou em minha posição. Entreguei minha descoberta simplesmente porque desejava que ela continuasse a existir. Embora a Cidade Química n° 4 virasse ruínas, embora todo o Estado Mundial se transformasse em um deserto de cinza e pedras, eu queria pelo menos imaginar que em algum lugar, em outras terras e entre outros povos, uma nova Linda falaria, como a primeira, espontaneamente, que alguém tentaria forçá-la, e que um outro grupo de delatores aterrorizados ouviria um novo Rissen. Isto era naturalmente superstição, pois nada se repete, mas eu nada tinha a fazer. Esta era minha única e frágil possibilidade de continuar o que me fora impedido.
Como fui depois transportado para uma cidade estrangeira, para trabalhar sob vigilância em uma prisão-laboratório, já contei.

Contei também que os primeiros anos de minha prisão transcorreram cheios de angústia e dúvidas. Informações reais sobre o destino da Cidade Química jamais consegui obter, mas aos poucos imaginei o plano seguido pelo inimigo. Consistiria em inundar de gases as ruas e impedir a renovação de ar das partes subterrâneas da cidade, até que os habitantes em desespero subissem até as poucas saídas livres, um a um ou em pequenos grupos se entregassem ao poderio inimigo. Até que ponto foram suficientes os reservatórios de oxigênio subterrâneo, e se a coragem dos habitantes foi tal que preferiram a morte à rendição, não sei. Era de supor-se ainda que o cerco todo fracassara, e que esforços haviam chegado de outras regiões do Estado Mundial. Como já disse, jamais chegarei a saber algo. Mas de qualquer forma existia uma possibilidade de que Linda estivesse viva. Talvez até mesmo Rissen, caso não tivessem tido tempo de executá-lo. Sei que isto é uma fantasia inverossímil, e se quisesse interrogar minha razão, passaria o resto da minha vida em dúvidas. Se não o faço é porque meu instinto de conservação me força a buscar conforto na ilusão. O próprio Rissen dissera antes de ser condenado: “Sei que o que sou leva a algum lugar”. Não estou muito certo do que ele queria dizer. Mas me acontece muitas vezes, quando sento em minha maca com os olhos fechados, ver as estrelas cintilarem e ouvir o vento sussurrar como aquela noite, e eu não posso, não consigo extirpar de meu ser a ilusão de que eu ainda, apesar de tudo, estou prestes a criar um mundo novo.





POSFÁCIO DO CENSOR


Em vista do conteúdo imoral do presente escrito decidiu o Departamento de Censura juntar o mesmo aos manuscritos subversivos do Arquivo Secreto do Estado Universal. Que ele simplesmente não tenha sido destruído dependeu do fato de que justamente este conteúdo imoral poderá ser utilizado por pesquisadores esclarecidos para o estudo da mentalidade dos seres que habitam o país contíguo ao nosso. O prisioneiro que concebeu o manuscrito e que continua trabalhando como químico sob vigilância – agora com mais rígido controle de como utiliza os papéis e canetas do Estado – é, em sua estranha e progressiva deslealdade, em sua covardia e superstição, um bom exemplo da decadência característica do país inferior que nos é vizinho, que não pode ser explicada senão através de um ainda não pesquisado envenenamento interior hereditário e incurável do qual nossa nação está felizmente livre e, se o referido envenenamento propagar-se além das fronteiras, deve ser necessariamente descoberto através do meio que o dito prisioneiro contribuiu a instituir. Recomendo portanto aos que têm em mãos o empréstimo deste manuscrito o mais alto cuidado, e aos que lerem uma crítica minuciosa como também a mais sólida esperança num futuro melhor e mais feliz do Estado Universal.


HUNG PAIPHO
Censor



------------------------------------- S L U T ---------------------------------