¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, agosto 29, 2010
 
VAI MAL A UNIVERSIDADE


Recebi até agora vários mails sobre a crônica de ontem, em que comento o analfabetismo de um repórter de Veja, ao grafar “a enfisema”. Aconteceu o que eu temia. Três missivistas nada viram demais no texto, apesar de o redator repetir “a enfisema” pelo menos nove vezes. Em verdade, título à parte – “Vai mal a Veja” – não fiz comentário algum. Contentei-me em reproduzir a reportagem, ciente de que o leitor identificaria a mancada. Estou superestimando a cultura vernácula das gentes. Três, pelo menos, não a identificaram. Sendo que um deles é professor universitário.

Nada de espantar. Em meus dias de universidade, cansei de ouvir expressões como uma grama, duzentas gramas, com a unidade de medida flexionada assim no feminino. Tanto por alunos como por professores. Quando eu dizia um grama, percebia um certo espanto no interlocutor. Mesmo hoje, você encontra este erro nos grandes jornais, já nem falo dos jornalecos do interior. Mas o que mais me doía no estômago era ouvir de minhas aluninhas – de Letras - a expressão “a esperma”. É coisa que só ouvi em Florianópolis. O esperma para mim nada tem demais. Mas “a esperma” soa para mim como algo emético.

O raciocínio do analfabeto não deixa de ter sua lógica. Substantivos que terminam em a só podem ser femininos. Ora, não é preciso ser etimólogo para se saber que os substantivos do português derivados de palavras gregas terminadas em “ma” vão para o masculino. Tripanossoma, cromossoma, carcinoma, teorema, eczema, enema, eritema, estoma, estroma, genoma, lipoma, mioma, protoplasma, etc. Mas quem se preocupa com etimologia? Quem sabe hoje que palavras banais como sintoma, aroma ou dilema são derivadas do grego?

Piores que os sonetos, só foram as emendas. O professor universitário que nada viu de anormal no texto de Veja, me escreve: “Na real, tive uma boa formação básica lendo todos os autores nacionais que tu detestas (Érico Veríssimo, Machado de Assis, Jorge Amado, só para citar alguns). Foi com esta turma que eu aprendi bastante do português que eu sei hoje”. Pelo jeito, leu com muita desatenção. Ou saberia que se escreve Erico Verissimo, assim sem acentos, e não Érico Veríssimo. De qualquer forma, nenhum desses escritores escreveria "a enfisema".

Já um outro leitor, com formação em Medicina, adverte: “Ah!... Mas talvez em Veja o cultíssimo autor estivesse a exercer sutilissimamente, recorrendo à repetição como ênfase, o recurso extraordinário da eclipse? Ao dizer "a enfisema" não estaria visível, ali no entremeio, apenas para excelentes entendedores o termo "doença"? Como aliás está, afinal, também eclipsado o termo "pulmonar" -- visto que enfisema é sinal suscetível de manifestar-se em praticamente qualquer região da anatomia?”

A este, que conheço de longa data, vou conceder um crédito. Vou supor que esteja fazendo piada. Queria dizer elipse, não? Eclipse é outra coisa. Seja como for, o leitor está sendo muito leniente. Sou mais a hipótese de analfabetismo. Ninguém fala em elipse quando alguém diz "uma grama". O que é muito comum, inclusive nos jornais de boas famílias.

Não, não estou propondo que se volte a estudar grego no secundário, como se fazia há algumas décadas. Mas penso que todo universitário – e particularmente os professores universitários – deveriam ter um dicionário em suas bibliotecas. Sei, bibliotecas são raras, mesmo entre acadêmicos. Mas pelo menos um bom dicionário numa estante qualquer de casa.

Talvez o leitor se espante, mas falamos grego todos os dias. Palavras como táxi ou telefone são o mais puro grego. Ou pélago. Ou nosocômio. Se pronunciamos geologia, geografia, ictiologia, heliocêntrico, cosméticos, paleografia, bíblia, hagiografia, homossexualismo – e milhares de outras palavras – estamos de volta à antiga Grécia.

Não é preciso erudição para conhecer isto. Basta um mínimo de informação, de atenção à língua que falamos. Não vamos exigir isto de Lula e Dilma. (A propósito, a candidata está falando pior que seu criador). Mas não se pode admitir que jornalistas ou universitários falem em “a enfisema” ou “uma grama”.

Veja vai mal e a universidade também.