¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, agosto 17, 2010
 
VONTADE DE AURORAS


Longo é o caminho de um ianque até o entendimento. Leio no New York Times que novos estudos sobre consumo e felicidade mostram que as pessoas ficam mais felizes quando gastam seu dinheiro em experiências em vez de objetos materiais, quando saboreiam o que pretendem adquirir muito antes de fazê-lo, e quando param de tentar competir com seus vizinhos.

"É melhor sair de férias do que comprar um sofá novo, essa é basicamente a idéia", diz Elizabeth Dunn, professora do Departamento de Psicologia da Universidade da Colúmbia Britânica, especializada em estudos sobre consumo e felicidade. "Há uma enorme literatura sobre renda e felicidade. É incrível como há pouco sobre como você gasta o seu dinheiro".

Estudos sobre consumo, até que entendo. Quanto a estudos sobre felicidade, fico com um pé atrás. Felicidade é algo muito subjetivo e há tanto quem fique feliz quando seu time ganha um campeonato como quem fique feliz com as vitórias de um filho, com a leitura de um bom livro ou com a audição de uma grande ópera. Tampouco me parece serem necessárias pesquisas acadêmicas para entender que é melhor sair de férias do que comprar um sofá. Um sofá é um mero sofá e férias são descanso, viagem, fuga da rotina, novas descobertas.

Não consigo entender o apego exacerbado de certas pessoas a bens materiais. Nunca tive carro, coisa que nunca me fez falta. Certo, nunca precisei de um para trabalhar. Curiosamente, convivo quase que exclusivamente com pessoas que não têm carro. Ou, se têm, pouco o usam. Observei, no decorrer da vida, que pessoas chegadas à literatura normalmente dispensam esses objetos.

Houve época em que pensei em dirigir. Foi nos dias de Florianópolis. Morava na Lagoa, longe da universidade. Até tentei, mas achei muito complicado. Além disso, gostava de tomar meus tragos em fim de tarde. Teria de optar entre dirigir ou beber. Preferi a última opção. Abandonei a Lagoa e sua placidez e fui morar na cidade. Só para não ter de dirigir.

Meu apartamento seria decepcionante para um ladrão. Tenho uma boa biblioteca, é verdade, mas ladrão não se interessa por livros. Não tenho jóias nem quadros de valor. Minhas paredes são ornadas com momentos e pessoas de minha vida. Quanto a roupas, alguns jeans, algumas camisas e duas ou três jaquetas. É o que me basta.

Descobri que com dois pares de calça, algumas camisas, sapatos e tênis, se pode muito bem varar os anos. Terno e gravata, usei-os pela última vez no dia 04 de março de 1981. Foi quando defendi minha tese. Ou seja, há quase trinta anos. De lá para cá, sempre evitei qualquer circunstância que me exija vestes a rigor.

O que me causa problemas em óperas na Europa, onde o pessoal vai de black tie. Você pode ir como quiser, mas sempre é um pouco constrangedor estar em mangas de camisa em meio aos pingüins. Passei maus momentos na Staatsoper de Viena. Fui assistir ao Die Entführung aus dem Serail, do Mozart. Estava de parca. Na chapelaria, tomaram meu casaco. Vestido apenas com uma blusa, me senti nu. Por tais razões, adorei as salas de Nova York, onde você vai de jeans e tênis e não se sente um estranho no ninho.

Minhas posses não são passíveis de roubo. Ninguém conseguirá roubar minhas leituras, muito menos minhas viagens. Nos dias de Estocolmo, tive uma boa amiga que era guia turística. Seus pais não gostavam da profissão. “Mas no dia em que os russos invadirem a Suécia – dizia –, eles podem tirar propriedades de todo mundo. Mas de minhas viagens jamais conseguirão me desapropriar”. No fundo, um medo que eu, latino-americano, desconhecia: o medo dos soviéticos.

Conheço gente muito rica no mundo, que vive em poucos metros quadrados. Sem carro nem muitas posses. São ricos em experiência. Vivem em espaços exíguos e se dedicam a bater pernas pelo mundo. Um deles vive em 27 m2. Um dia está na França, outro no Egito, ou nas Canárias, ou na Tailândia ou Camboja. Ou em Atacama ou Uyuni. Certo dia, em Paris, conversando com um destes viajores, perguntei se conhecia a Cordilheira dos Andes. “Ah sim, estive no Aconcágua”. Aconcágua como? Isso é para alpinistas. Ou andinistas, como se diz por aqui. “Sim, eu sou alpinista”. Havia escalado o Himalaia, o Kilimanjaro e o Aconcágua. Fiquei olhando para aquele vulto franzino e me senti um pobre diabo.

O que tenho, invisto nos prazeres do espírito, e viajar é um dos mais inefáveis. Sou feliz? Se felicidade é um nirvana, no qual as pessoas se contentam com o que têm, não, não sou feliz. Me faltam muitas coisas, entre elas uma aurora boreal. Mas auroras boreais são moças difíceis, temos de enfrentar os invernos do norte e ficar à espera delas. Talvez um dia chegue lá.

Enquanto isso, não sou exatamente feliz.