¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, setembro 30, 2010
 
Os grandes mistérios bíblicos:
TRÊS PESSOAS NUMA SÓ E UM
SÓ HOMEM EM DUAS MULAS



Já falei de meu urólogo, o que me prescreve não só remédios mas também bons livros. Aconteceu que um dia cheguei em seu consultório com um dicionário de teologia, como leitura de espera. “Ah, és chegado a essas leituras?” – me perguntou. Era. A partir daí, cada encontro é uma troca de bibliografias. Ele é leitor dos bons. Seguidamente o encontro nos cafés do bairro, sempre munido de livros.

Sua última prescrição foi A Origem do Cristianismo, de Karl Kautsky, publicado em 1908. Kautsky é um historiador marxista e seus ensaios foram considerados por Lênin um “patrimônio perdurável do proletariado”. No livro, fiel à sua filosofia, o autor emprega o termo proletariado – a meu ver abusivamente – para designar parte da população do Império Romano de baixo poder aquisitivo e livre de imposto, considerados úteis apenas pela prole que geravam. Em seu afã de analisar o cristianismo a partir de conceitos do século XIX, Kautsky usa a palavra comunismo para retratar o coletivismo em que viviam certas comunidades judaicas, sobretudo os essênios e os zelotes. Apesar do viés marxista, o livro propõe uma análise percuciente da emersão do cristianismo na sociedade romana. O autor discute os grandes mistérios da nova seita.

“O pensamento cristão, em tal esforço para dar prestígio ao Messias, encontrou uma pequena dificuldade: o monoteísmo, que recebeu dos judeus. Um Deus gerando um filho não é nada anormal no politeísmo: é mais um deus. Mas fazer com que um Deus gere outro e permaneça uma unidade, isto não é tão fácil de explicar. E o assunto não se simplificava isolando o poder criativo emanado da divindade de Deus na forma de um Espírito Santo especial. O problema era agora acomodar essas três pessoas sob um só conceito que abarcasse as três. Essa foi uma tarefa em que a mais extravagante fantasia e fina sutileza fracassou. A Trindade tornou-se um dos mistérios em que se devia crer, mesmo sem entendê-lo; um mistério em que se devia crer precisamente em razão de seu absurdo”.

Constantino I, imperador romano que andava em busca de um deus poderoso para seu império, adotou o deus judaico-cristão. Mas logo percebeu que com essa história de Pai, Filho e Espírito, a nova religião estava voltando ao politeísmo. Então decretou, no Concílio de Nicéia, realizado sob sua sombra em 325 d. C., que os três eram um só. Não entendeu? Não é para entender mesmo. É mistério.

Mas Kautsky trata também de mistérios menores, que só um leitor atento da Bíblia percebe:

“Como uma curiosidade divertida, chamemos aqui a atenção para o milagre literário realizado por Mateus ao apresentar Jesus sentado simultaneamente sobre dois animais ao entrar na cidade. (Bruno Bauer, Kritik der Evangelien, vol. III, p. 114). As traduções tradicionais ratificam esse milagre. Assim Lutero traduz: "E trouxeram o asno e o jumento e puseram sobre eles seus mantos; e o sentaram sobre eles". (Mateus XXI, 7) Mas, no original, lemos: "E trouxeram o asno (fêmea) e o jumento e puseram seus vestidos sobre ambos e o sentaram sobre ambos". E apesar de todas as liberdades anteriores tomadas por artistas literários, essa falsidade foi reescrita século após século, por um copista após outro, o que prova a irreflexão e simplicidade dos compiladores dos Evangelhos”.

Kautsky terá consultado antigas edições da Bíblia. Neste século, os tradutores tentaram tornar mais verossímil o episódio. Na tradução do João Ferreira de Almeida encontrei:

Indo, pois, os discípulos e fazendo como Jesus lhes ordenara, trouxeram a jumenta e o jumentinho, e sobre eles puseram os seus mantos, e Jesus montou.

O que já é um pouco diferente. É também mais ou menos o que está na Bíblia de Jerusalém. Na versão da Alliance Biblique Universelle, consta:

Les disciples partirent donc e firent ce que Jésus leur avait ordonné. Ils amenèrent l'ânesse et l'ânon, posèrent leurs manteaux sur eux et Jésus s'assis dessus.

E para quem entende a língua usada por Mateus, segue o texto em grego transliterado:

Poreuthentes de oi mathētai kai poiēsantes kathōs prosetaxen autois o iēsous ēgagon tēn onon kai ton pōlon kai epethēkan epanō autōn ta imatia autōn kai epekathisen epanō autōn o de pleistos ochlos estrōsan eautōn ta imatia en tē odō alloi de ekopton kladous apo tōn dendrōn kai estrōnnuon en tē odō.

Mistério, profundo mistério…