¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, setembro 16, 2010
 
LE MONDE LOUVA POTENCIAL
COMPRADOR DE 36 RAFALES



Enquanto o país afunda em negociatas oriundas de Brasília, a imprensa francesa, que sempre foi crítica em relação ao Brasil, agora se entrega ao charme do presidente mais conivente com a corrupção em toda a história da República. Por mãos amigas, recebo de Paris um suplemento do Le Monde – 98 páginas em formato de revista –, louvando não só o Brasil de Lula mas também Lula, intitulado Brésil un géant s’impose.

Sobra até para o hino nacional e seu afonsocelsismo desmesurado. Escreve o correspondente Jean-Pierre Langellier:

O hino nacional, escrito em 1909, canta as vantagens do Brasil. “Gigante pela própria natureza, és belo, és forte, impávido colosso”. Na mesma época, Georges Clemenceau lançava a seu propósito um cumprimento pérfido: “um país de futuro, e que assim restará por muito tempo”.

Até os últimos tempos, o impávido colosso continuava sendo um país do futuro. A força e a beleza deste gigante tardavam a se impor. Hoje, qual um Gulliver libertado de suas peias, o Brasil se reergue, e, subitamente confiante em si mesmo, dirige seu olhar ao longe, além de sua própria imensidão – quinze vezes o território da França – rumo ao mundo global onde aspira os primeiros lugares.


Mais uma reverência ao libertador do gigante:

Como diz o presidente Luiz Inacio Lula da Silva, familiar às metáforas futebolísticas, e cujo rosto jovial encarna esta renascença: “Nós estamos cansados de jogar na segunda divisão”. Pela primeira vez em sua existência semimilenar, o Brasil tem um encontro feliz com a história, ao qual não quer faltar. “Neste momento quase mágico, resume Lula, Deus é brasileiro”.

Ou seja, nunca na história deste país... – como pisa e repisa o Supremo Apedeuta. Franceses adoram operários no poder. Desde que não seja na França. O respeito ao vernáculo é critério importante na França para a eleição de um mandatário. Là-bas, dans le Thiers Monde, se releva. Lula é elevado ao Olimpo da oratória:

O verbo foi sua primeira arma em política. “Se eu tivesse cobrado meus discursos, eu seria milionário há muito tempo”, disse um dia o presidente brasileiro. Ao longo de sua carreira, este orador nato pronunciou milhares de alocuções públicas, muitas vezes de inproviso, e concedeu centenas de entrevistas à mídia.

Nenhuma palavrinha sobre os maus tratos que Lula infligiu ao verbo. Pelo contrário, suas palavras são penteadas. Lula disse: “minha mãe nasceu analfabeta”. Le Monde corrige: “minha mãe era analfabeta”. (Verdade que, em outro artigo, é reestabelecida a frase original). O obtuso, que sempre teve dificuldade em flexionar gênero e número, vira de repente gênio da oratória. O máximo que o jornal menciona são as mancadas em política externa de Lula, como suas declarações em Londres sobre o “comportamento irracional dos brancos de olhos azuis” e sua gafe na África, quando disse que a Namíbia nem parecia país africano, dada a limpeza e a beleza de suas ruas. Mas palavra alguma sobre a defesa de um terrorista italiano ou da devolução de perseguidos políticos a Cuba.

Mas isto é o de menos. Nas 98 páginas do suplemento, não encontramos uma alusão sequer aos escândalos que permearam seu governo, todos amplamente denunciados pela imprensa brasileira. Nada sobre a quadrilha do mensalão, chefiada por seu então ministro da Casa Civil, José Dirceu. Nada sobre a quebra de sigilo bancário de um humilde caseiro, o Francenildo, por um outro de seus ministros, Antonio Palloci. Nada sobre dólares na cueca. Nada sobre a aliança com corruptos notórios como José Sarney e Fernando Collor de Mello.

Nada sobre os criminosos forjadores de dossiês, aos quais Lula estendeu uma mão leniente ao chamá-los eufemisticamente de aloprados. Nada sobre os cinco milhões de reais que a Telemar injetou na empresa de Fábio Luís Lula da Silva, o Lulinha. Nada sobre os ímpetos totalitários que de repente acometem o bracinho do Dr. Strangelove tupiniquim, quando nega aos demais partidos o direito de fazer oposição e à imprensa o direito à crítica.

Pelo contrário, Lula é a consagração de um homem do povo. “Em Lula, o estilo faz o homem. Ele tem o sorriso e o abraço fáceis. Sua autoridade natural, seu carisma, seus dotes de tribuno suscitam simpatia e respeito. Lula pôs sua cordialidade, esta qualidade eminentemente brasileira, ao serviço de uma empresa de auto-estima coletiva. (...) Sem modelo nem ídolo, Lula foi seu próprio herói. À força de coragem, de tenacidade e de bom senso, o antigo menino do Nordeste que se tornou engraxate, torneiro mecânico,chefe sindicalista, fundador do Partido dos Trabalhadores e candidato três vezes derrotados à presidência antes de vencer em 2002, forjou para si um destino que ele dá prazerosamente como exemplo aos mais humildes para alimentar seus desejos de salvar-se”.

Em suma, o homem inculto, incoerente, arrogante e cúmplice da corrupção vira agora modelo para toda a humanidade. Neste hagiológio ao Brasil de Lula, sobrou até para um outro enganador, o Chico Xavier, “o mais espantoso médium do século XX. Criança mestiça, pobre, adulto de físico ingrato, tornou-se objeto de culto popular. Graças a seus dons misteriosos mas também à sua vida exemplar, aquela de um homem honesto, modesto, trabalhador e profundamente altruísta”. Pelo jeito, o redator desconhece os plágios de Chico Xavier da obra do francês Ernest Renan, este sim um homem honesto.

Não faltam, é claro, louvações ao futebol e às telenovelas, estas duas pragas que assolam o país. Tampouco poderia faltar um aceno às favelas, estes conglomerados de miséria e criminalidade que os franceses tanto adoram. E aos índios, é claro, estes párias da modernidade, que sequer conseguiram escapar, apesar de milênios de existência, de uma cultura ágrafa. Le Monde mostra, enfim, o Brasil que um europeu gosta de ver: inculto, atrasado e administrado por um operário que se orgulha de sua incultura.

Que mais não seja, sempre é bom cajoler o comprador potencial de 36 Rafales.