¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, setembro 13, 2010
 
REFORMAS EM MEU
ANTIGO ESCRITÓRIO



De Porto Alegre, recebo notícias que em outros tempos seriam alvissareiras. Hoje, não. Meu antigo escritório será reformado e ampliado. Por meu antigo escritório entenda-se o Chalé da Praça XV, restaurante capitaneado em meus dias de Rua da Praia por Her Moser, autor de um dos mais sábios aforismos que já ouvi: fora do bar não há salvação.

Lá eu tinha mesa cativa e, se estava em Porto Alegre, raros foram os dias em que deixei de bater ponto. Sempre entendi que um jornalista ou escritor deve ter um ponto fixo e conhecido onde possa ser encontrado pelos leitores. O meu era o Chalé. Quem quisesse me encontrar sabia que, lá pelas sete da tarde, eu já estava lá.

Gosto de bares centenários, coisa rara neste país que pouco cultiva o antigo. O primeiro Chalé datava de 1885, como quiosque para venda de sorvetes. Em 1909 foi construído um pavillon, em substituição ao antigo quiosque. Em 1911, tomou assumiu sua atual arquitetura, quando a Prefeitura substituiu o antigo chalé de madeira por um prédio composto por estruturas inglesas de aço desmontável e vidros que vieram de uma feira internacional de calçados, de Buenos Aires. É muito difícil hoje, no Brasil, encontrar um restaurante centenário. Em Porto Alegre, pelo que sei, resta só um outro, o Gambrinus, no Mercado Público. Onde, há dois meses, degustei um mocotó divino.

No Chalé, trabalhei, filosofei, li, escrevi ou concebi minhas crônicas, bebi, confraternizei, charlei, namorei e – obviamente – também tomei meus porres. Lá tive notícias da boa literatura, coisa que não encontrava na universidade. Minha formação literária, não seria exagero afirmar, ocorreu naquelas mesas. Quando comecei a viajar, se chegava a Porto Alegre em tempo hábil, saía do aeroporto e antes de ir para casa ia para o Chalé. Lá, eu recebia correspondência, telefonemas e visitas.

Mas os tempos eram outros. O centro de Porto Alegre ainda era freqüentável. Hoje, após as sucessivas gestões do PT, tornou-se reduto de camelôs e traficantes. Havia a Rua da Praia, ali ao lado, onde as gaúchas iam desfilar seu charme. Os varões fincavam pé no meio da rua – fechada a carros – e olhavam as meninas que passavam. Era fenômeno creio que único no Brasil. Certa vez, conversando com um sociólogo americano, Carlos Cortez, ele perguntou-me:

- Que é isso? Hoje é feriado?
Nada disso. É dia normal de trabalho.
- E essa gente parada na rua, que está fazendo?
Olhando as mulheres que passam, oras.

Cortez não entendia. Garantiu-me que, quando fosse ditador dos Estados Unidos, obrigaria os americanos a ficarem três ou quatro horas parados na rua. Era também na Rua da Praia que eu perambulava, à madrugada, com o Mário Quintana. Homem de diálogo difícil, caminhava quase sempre silente, pronunciando uma frase lá de vez em quando. Ali pertinho, na Borges, morava o Dyonélio Machado, comunista ferrenho que introduziu-me nos estudos bíblicos. Já octogenário, perambulava longas horas pela Rua da Praia e adjacências. "Velho que não anda, desanda", dizia-me.

Havia um outro ponto de encontro no centro, a Pastelaria e Rotisserie Pelotense, na Riachuelo. Era meu escritório alternativo, reduto do Carlos Coelho e do Sampaulo, o chargista, do Clóvis Camargo Ott, Darci Demétrio, Artur Monteiro e Marcelo Renato, jornalistas daqueles antigos, movidos a álcool puro. Havia também o Carlinhos Guimaraens, enciclopédia ambulante sempre ao dispor dos amigos.

Quando a Caldas Júnior foi comprada por uma pessoa estranha ao jornalismo, o novo proprietário impôs uma norma à empresa: BBC não trabalha mais aqui. Por BBC, o sedizente Dr. Ribeiro entendia bichas, bêbados e comunistas. O Guima, pacientemente, se escorando numa parede, teve de explicar ao Dr. Ribeiro:
- Dr! Dá pra fazer um jornal sem bicha. Sem comunista, também. O que não dá pra fazer é um jornal sem bêbados.

Era a Porto Alegre da Praça da Alfândega, onde discutíamos os destinos do mundo – e a natureza das mulheres – até o amanhecer. Lembro que, certa vez, quando ainda não havíamos decidido se as mulheres eram infernais e cruéis ou divinas e afáveis, olhei para a calçada e vi pombas ciscando. Ora, pomba não é boêmia, não anda à noite. É que já eram sete da manhã e eu não havia notado.

Havia mistérios no Chalé que até os próprios garçons desconheciam. Nossos garçons prediletos eram o Speak Deutsche – assim chamado por motivos óbvios – e o César Vidrinho, o de óculos de fundo de garrafa. João era o chefe dos garçons. Certo dia, uma filha do João começou a freqüentar um curandeiro, nos arrabaldes de Porto Alegre. Quando descobriu que o curandeiro era o César Vidrinho, que faturava uma graninha por fora com um alterego, ficaram longas semanas sem falar um com o outro.

Neste contexto, o Chalé tinha sentido. Depois que saí de Porto Alegre, costumava hospedar-me no City Hotel, ao lado de meu bebedouro predileto. Com o tempo, levei medo e troquei de hotel. A Rua da Praia, a Praça da Alfândega, a XV, o centro todo, hoje são assustadores à noite. Quem cruza aquelas ruas tem vocação para suicida.

Leio que o Chalé será ampliado e poderá receber até seiscentas pessoas. Tarde demais. Hoje, mesmo de dia, é desagradável ir até o café. Você tem de ombrear por massas de camelôs. A casa decaiu e já não consegue lotar nem metade de suas mesas. O entorno da Praça, à noite, fica tomado por traficantes, pivetes, assaltantes.

O centro de Porto Alegre morreu. E não acredito em ressurreição.