¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, setembro 15, 2010
 
RÚSSIA, DE CATÓLICA ORTODOXA
A ESTADO TEOCRÁTICO ISLÂMICO



O Estadão publicou, segunda-feira passada, um suplemento comercial da Rossiyskaya Gazeta. “Como vivemos, o que fazemos, quais problemas enfrentamos e resolvemos: é isso o que queremos para o leitor brasileiro nas páginas da Gazeta Russa”, diz a apresentação do suplemento. Até aí, estamos todos de acordo.

Ocorre que já em seu primeiro número, a Gazeta, em tom de editorial, louva as verbas do Kremlin destinadas a universidades islâmicas como uma tentativa de unificar a religião no país, no artigo didaticamente intitulado “Islã é receita contra o extremismo”. Depois do 11 de Setembro, dos homens-bomba que se explodem tanto em Israel como em países muçulmanos, a quem quer convencer o articulista? Não é bem sobre “como vivemos e quais problemas enfrentamos” que a Gazeta quer informar. No fundo, quer catequizar. Jornalista russo, pelo jeito, não consegue entender jornalismo senão como militância. Quem diria que a Santa Madre Rússia, que um dia foi bastião do catolicismo e mais tarde fortaleza do ateísmo marxista, tendesse hoje a Estado teocrático islâmico.

Quando afirmo que o comunismo tem suas origens em países católicos e cito a Rússia como exemplo, católico é o que não falta para protestar que a Rússia nunca foi católica e sim ortodoxa. Ora, a Igreja russa era originalmente católica ortodoxa e só mais tarde, talvez para distinguir-se da romana, passou a chamar-se simplesmente de ortodoxa. As duas igrejas se separaram em 1054, em função do dogma da trindade. Ambas continuaram católicas. Mas havia um senão: o filioque.

Para Harold Bloom, em seu excelente Jesus e Javé, a unificação do Pai, do Filho e do Espírito Santo, isto é, o dogma da Trindade, "sempre constituiu a linha crucial de defesa da Igreja contra a imputação judaica e islâmica de que o cristianismo não é uma religião monoteísta". É um achado da Igreja, saliente-se, pois a palavra trindade não consta da Bíblia. O máximo que encontramos é Javé falando no plural, ou Paulo apresentando Jesus e o Espírito como intimamente ligados a Deus, indicando assim que, na Divindade, Deus, Jesus e o Espírito formam uma unidade.

Tudo isto para fugir a qualquer semelhança com as tríades divinas das religiões pagãs, em que um deus-pai, uma deusa-mãe e um filho formam uma família de deuses, sendo muitas vezes mencionados juntos, como Osíris, Isis e Hórus no Egito. Ou o deus lunar, a deusa solar e a estrela Vênus na Arábia. Ou ainda Brama, Rudra e Vixnu da Índia.

Tivessem os teólogos se contentado com este malabarismo conceitual para construir um sistema religioso monolítico, até que o dogma da Trindade não seria de difícil intelecção. Ocorre que os teólogos são minudentes e uma complicada peripécia iria provocar uma violenta cisão na cristandade no século XI.

Segundo o Evangelho de João, o Espírito Santo procede do Pai. Assim o entendeu o Credo niceno-constantinopolitano, que no ano de 381 já repetia esta profissão de fé. Sabe-se lá porque cargas d'água, os latinos acrescentaram ao Credo a partícula filioque, professando que o Espírito procede do Pai e do Filho. Os cristãos orientais acusaram então os latinos de haver alterado os símbolos da fé. Em 444, Cirilo da Alexandria afirmava que o "Espírito é o Espírito de Deus Pai e, ao mesmo tempo, Espírito do Filho, saindo substancialmente de ambos simultaneamente, isto é, derramado pelo Pai a partir do Filho". São inúmeros os teólogos que eram do mesmo aviso. Mas os cristãos gregos não conseguiam aceitar a polêmica conjunção, o e (que, em latim).

O caldo engrossou quando o Concílio de Toledo, em 589, oficializou o símbolo da fé com o filioque, e considerou anátema a recusa da crença de que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho. Não bastasse o absurdo conceito do três-em-um - inteligível se levamos em conta a preocupação de fugir ao politeísmo - discutia-se agora a relação de um com os outros dois. Pensamento dogmático é assim mesmo.

O debate percorreu os séculos. As comunidades se cindiram em 1054 e até hoje não chegaram um acordo sobre esta questão literalmente bizantina. Moscou tornou-se o centro mais importante da nova igreja, a católica ortodoxa. Dostoievski, é bom lembrar, era católico ferrenho. Ainda recentemente, em 1995, João Paulo II tentava esclarecer a questão da Trindade com o patriarca Bartolomeu I, numa tentativa de melhorar as relações com os orientais.

Esclarecida a pendenga do filioque e da Igreja Católica Ortodoxa Russa, volto ao artigo da Gazeta. “O incentivo governamental a essas instituições se dá principalmente por meio de subsídios. A medida soma-se ao esforço de combater o extremismo religioso e o doloroso conflito marcado por ataques suicidas e pelo assassinato de policiais, prefeitos e líderes religiosos que tomou conta do Daguestão e de outras repúblicas russas na região do Cáucaso do Norte. Atualmente o governo russo investe verbas em onze universidades islâmicas, sendo quatro apenas em repúblicas ao norte do Cáucaso”.

Os muçulmanos parecem ter encontrado o segredo de lidar com a Rússia. Basta matar policiais, prefeitos e líderes religiosos, que o Estado russo imediatamente financia universidades ligadas à religião que mata seus policiais, prefeitos e líderes religiosos. O mesmo está acontecendo na França. Para enfrentar o desrespeito flagrante dos muçulmanos que bloqueiam ruas para rezar em Paris, o prefeito Bertrand Delanoë promete premiar os muçulmanos com uma mesquita na Goutte d’Or.

“De acordo com os planos do Fundo do Kremlin para o Apoio da Cultura, Ciência e Educação Islâmica – diz a Gazeta – todos os anos serão aplicados cerca de US$ 13 milhões em programas educacionais, bolsas de estudos e publicações. Rufik Mukhamedsin, o reitor da Universidade Islâmica em Kazan, espera que o Estado também padronize os diplomas concedidos por institutos educacionais islâmicos, garantindo que esses documentos sejam aceitos por todo o país”.

As madrassas estão assumindo o ensino na Rússia, financiadas pelo Estado russo. A antiga nação católica, e mais tarde comunista e atéia, está virando Estado teocrático. Pior ainda, teocrático e muçulmano.