¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, setembro 23, 2010
 
SOBRE SER GAÚCHO

Do Sul, recebo:

Prezado Janer!

Saúde e paz!

Escrevo para manifestar um certo desconforto com os escritos sobre o Vinte de Setembro. Poderia ter ficado quieto, mas acho que minha consciência me cobraria. Sou do interior (pelas tuas bandas, mais ou menos, sou de Cacequi), onde me criei e sempre vivi perto de um CTG. Sempre gostei da vida campeira e particularmente nessas sociedades aprendi muito sobre nós. Claro, tem muita gente que exagera, mas a pergunta que faço é esta: Que mal faz participarmos de desfiles, cantarmos músicas, declamarmos poesias, etc...etc...? Nenhum mal.

Hoje vivo na capital desde a década de 60 e confesso que sinto saudades das coisas da minha terra. No dia 20 de setembro, por coincidência, estava em Santana do Livramento, onde aportei para abastecer a adega, (perto de tuas plagas) e assisti (pela primeira vez) ao desfile farroupilha naquela cidade, junto com Rivera.

É inacreditável, tinha mais de cinco mil cavaleiros, fora carretas, charretes, carros alegóricos, etc... Tinhas que ver a alegria do pessoal. Gente simples, gente rica, gente chique, brancos, negros, homens mulheres (magras, gordas, loiras morenas). Vi até alguns já de cabelos brancos e dente de ouro (te lembras?), felizes desfilando em seus cavalos. Confesso que me emocionei. Sem contar a alegria estampada no rosto dos milhares de pessoas que assistiam o desfile.

Mas enfim, é só um desabafo. Creio que todos têm o direito de pensar diferente, mas me senti um pouco aborrecido por ter sido chamado de palhaço num dos posts. Mas é da vida. Um abraço e continuo aqui a te ler, recomendar e várias vezes até imprimo alguns dos teus escritos para enviar a amigos, principalmente os que escreves contra os descalabros da nossa vida nacional.

Hermes Dutra



Meu caro Hermes,

Minhas escusas se usei de mão pesada. Mas o cetegismo precisa ser denunciado. É uma distorção literária, sociológica e histórica, como diria Antero Marques. Não vejo nada de mal em participar de desfiles, cantar músicas, declamar poesias. Como tampouco vejo nada de mal no carnaval, embora dele não goste. Com uma diferença: se alguém se fantasia de Nero ou Cleópatra, em momento algum acredita que é Nero ou Cleopatra. Os rio-grandenses se fantasiam de gaúcho e acabam acreditando que são gaúchos. Mas os carnavalescos tiram a fantasia na quarta-feira de cinzas. Os cetegistas a portam o ano todo.

Ainda há pouco, um amigo me escrevia que ser gaúcho não depende de origem ou profissão, é um estado de espírito. “O Karl May escreveu sobre o Oeste americano sem nunca lá ter pisado. Sua obra construiu um personagem extraordinário Winnettou que era nobre, valente e acima das picuinhas do dia a dia. Sabe-se que os apaches eram atrasados, violentos, beberrões e destrutivos”.

Sim, lembro muito bem do Winnetou e Mão-de-Ferro e vibrei com suas aventuras. Era adolescente e curtia também Superman e Capitão Marvel, Zorro e David Crocket, Tim Holt, Tarzan e Diana, a rainha da selva. Sei que o Karl May nunca pisou no oeste americano. Mas estamos no campo da ficção, não da realidade. Lobsang Rampa também nunca esteve no Tibete. Em Lhasa, teria recebido treinamento para se tornar sacerdote-cirurgião, sob as bençãos do 13º Dalai Lama, o antecessor de Tenzin Gyatso, o 14º Oceano de Sabedoria. Ainda jovem, teria sofrido uma operação para a abertura do seu "terceiro olho", que lhe deu poderes de clarividência.

Tudo farsa. Mas estas ficções não geraram ideologias nem nacionalismos. Muito menos prebendas. Após ler Karl May, nunca me senti bugre americano ou aventureiro alemão. Nem monge budista após ler Rampa. O que estou afirmando é que o gaúcho é uma ficção de província. Os cetegistas se orgulham de ser o que não são. Se travestem de gaúchos e disto se jactam. O gaúcho mesmo está nas páginas de José Hernández, Hilario Ascasubi, Estanislao del Campo, Esteban Echeverria, Elias Regules, Serafin J. Garcia. Não em Erico Verissimo, por supuesto.

Ser gaúcho não é um estado de espírito. Se assim fosse, qualquer carioca ou caiçara, nordestino ou manauara, poderia sentir-se gaúcho. Gaúcho não existe sem pampa, vacas e cavalos. Digo mais: hoje, para chamar-se de gaúcho, alguém precisa ter uma tapera em seu passado. Não concebo como gaúcho quem nasceu no asfalto, brincando de Batman e Robin nos corredores de edifícios.

Claro que as pessoas se sentem alegres em tais eventos. É normal. É festa. Há milhares de pessoas, felizes, assistindo ao desfile? Em procissão, até cusco fica contente. Também sinto saudades das coisas de minha terra. Sempre sentimos saudades da infância. Mas sentir saudades da infância não é exatamente sinônimo de ser gaúcho. Hoje virei bicho da cidade e não poderia ser diferente: desde minha adolescência vivo em cidades.

Em post abaixo, transcrevo um dos mais belos poemas gaúchos que conheço, Mi Tapera, de Elías Regules. Nele se sente o gaúcho. Não na poesia ufanista dos parasitas de Estado que criaram os CTGs para salvar suas lavouras.

Grande abraço.