¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, outubro 25, 2010
 
BRASIL EXPORTA CÂNCER


Quando descobri ter sido premiado, ano passado, por um carcinoma de palato, a primeira pergunta que ouvi dos médicos foi: você fuma? Não, nunca fumei na vida. A menos que meu câncer tenho sido provocado por uma tragada que dei, lá pelos meus dez anos. Em uma pecinha de teatro na escola, fazíamos o papel de gaúchos. Como as professoras achavam que gaúcho pra ser gaúcho tem de fumar, permitiram à piazada chupar câncer. Foi a festa para meus colegas. Quanto a mim, pus o cigarro na boca, não gostei e o joguei pela janela.

Suponho que aquela tragada, há mais de meio século, não tenha sido a causa de meus dissabores no ano passado. Mas aventei a meus médicos a hipótese do fumo passivo, circunstância da qual dificilmente escapamos. Apesar do que os jornais afirmam sobre o fumo passivo, todos caíram na gargalhada.

Tenho amigas que fumam e outras que fumavam. Estas últimas, sofreram para largar o hábito. Não passa dia sem que me falem que a culpa é da publicidade, “que nos conduz a fumar”. Ora, nasci tão exposto quanto elas a esta publicidade, vivi minha adolescência vendo filmes onde não se sabia quem fumava mais, se o mocinho ou o bandido. Meus parentes todos fumavam. No entanto, jamais fumei. Há quem fale na propaganda subliminar do cinema. Podem atar-me em uma cadeira e passar filmes 24 horas por dia com propaganda subliminar do cigarro. Comigo não adianta. Ninguém me obriga a fazer o que não gosto.

Que o cigarro provoca câncer – e não só câncer, como várias outras doenças letais -, disto não temos dúvida. Quem fuma está matematicamente encurtando seus dias. É uma opção. Mas que depois não se queixem. Certa vez, um amigo fumante – que deixou de fumar mas hoje só tem 22% de capacidade respiratória – fez um cursinho contra o tabagismo. Teve em mãos fotos de pulmões de fumantes e não-fumantes. Procurou-me em meu boteco com o fervor de um cristão novo. “Janer, pelo amor de Deus, tens de parar de fumar”. Ora, ele sabia muito bem que eu jamais havia fumado.

Não tenho a notícia em mãos, mas tenho certeza que não sonhei. Em sua campanha anterior à Presidência da República, José Serra, em uma visita a Santa Cruz do Sul, manifestou seu apoio aos produtores de fumo. O mesmo Serra que, em agosto de 2008, quando governador do Estado de São Paulo, assinou projeto de lei que proibia completamente o fumo em ambientes de uso coletivo, fossem públicos ou privados. A medida incluía bares, restaurantes, boates, hotéis e áreas comuns de condomínios. O texto assinado pelo atual candidato não limitava a restrição apenas a ambientes onde havia comércio de alimentos - como açougues, padarias e supermercados -, mas estendia a proibição para áreas de lazer, esporte e entretenimento, entre outras.

A medida não deixa de ter seu lado ridículo. Nos bares com mesa na calçada, não se pode fumar debaixo do toldo. Há uma faixa amarela que delimita a área onde não se pode fumar. As pessoas saem então de suas mesas e vão fumar ao lado das mesas, mas fora da área coberta pelo toldo. Outros, mais pragmáticos, sentam-se ao lado da faixa amarela e estendem a mão que segura o cigarro para além da faixa. Tecnicamente, não estão transgredindo a lei.

Leio na Folha de São Paulo que Serra tentou amenizar sua fama de antitabagista para ganhar o voto de agricultores do Rio Grande do Sul. Aliados do tucano estão fazendo circular uma carta em que o candidato promete assistência técnica e crédito para as lavouras de tabaco.

Tudo pelo voto, inclusive jogar ao lixo qualquer indício de coerência. O Brasil é o segundo maior produtor e o principal exportador mundial de fumo. O Sul concentra 90% da atividade. O Sul vota. Portanto, nada de guerra ao tabaco. Fumo provoca câncer? Proíba-se o fumo no Brasil. Mas não vamos proibir uma indústria que dá emprego e lucros a milhares de pessoas, não é verdade?

"Minha luta contra os malefícios do cigarro são notórias, desde quando comandava o Ministério da Saúde. Jamais, porém, combati nem denegri o agricultor que luta, através da produção de fumo, para garantir o sustento de sua família", disse Serra recentemente. Seus propósitos são sublimes.

Que fazer então? Exporte-se o câncer. Amigos e leitores me alertam que Serra é o menos pior dos candidatos. Pode ser. Mas menos pior também é pior.

Por esta e por outras, no próximo domingo, de novo vou não votar. Como faço há vinte anos.