¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, outubro 20, 2010
 
HONRA E GLÓRIA A
BERNARD D. SADOW



Há descobertas geniais que estão a nosso lado e se tornaram tão banais que a elas não damos importância. Os restaurantes, por exemplo. Considero estas casas um dos mais esplêndidos achados da história humana e atualmente viajo quase só para visitá-los. Foi no livro A Invenção do Restaurante, de Rebecca L. Spang, onde descobri que os restaurantes evoluíram das maisons de santé até o que hoje conhecemos por restaurante.

A palavra decorre de uma paráfrase de um versículo de Mateus (11:28) "Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei". Lá pelos estertores do século XVIII, um dos primeiros restaurateurs da época pôs na entrada de sua casa esta frase um tanto blasfema: "Accurite ad me omnes qui stomacho laboratis et ego vos restaurabo". Corram a mim todos vós cujos estômagos padecem, e eu vos restabelecerei.

O mundo seria triste sem restaurantes e as viagens uma tortura. Você imaginou chegar em um país estranho e não ter onde comer? Enfim, havia as estalagens, onde se servia uma table d’hôte, mesa onde as comidas estavam à disposição dos comensais. Curiosamente, as tables d’hôte ressuscitaram hoje na forma de bufês. Outro grande achado que revolucionou a restauração foi o cardápio. Se antes quatro pessoas em uma mesa acabavam comendo os mesmos pratos, com o cardápio cada um pode eleger o seu. Hoje, quando nos sentamos em um restaurante, sequer imaginamos os séculos que a humanidade levou para chegar lá.

Houve também a roda. E depois da roda, a mala de rodinhas, utensílio hoje banal, mas que praticamente não existia quando comecei a viajar. O surgimento da mala de rodinhas ocorreu há quarenta anos, quando fiz minha primeira esticada ao exterior. É o que nos conta Joe Sharkey, no The New York Times. O benemérito e quase desconhecido inventor teria sido Bernard D. Sadow, dono de uma fábrica de malas que, ao voltar de uma viagem de férias com a família, na caribenha Aruba, teve a melhor idéia de sua vida. Atormentado com duas malas imensas e pesadas, olhou em volta e notou que, no terminal, uma esteira com rodinhas fazia as malas deslizarem sem esforço. "Olhei para a minha mulher e disse: quer saber? É disso que precisamos para a nossa bagagem”. Chegando a seu escritório, Sadow pegou as quatro rodinhas de um armário e instalou numa mala grande. "Completei com uma alça na frente e puxei. Funcionou".

É espantoso que tenham decorrido milênios entre a descoberta da roda e a da mala de rodinhas. Enfim, antes tarde do que nunca. Ainda segundo o NYT, a partir do modelo de Sadow surgiram outras inovações. A melhor delas feita em 1987, por Robert Plath, piloto da Northwest Airlines, que acrescentou uma longa alça à mala de rodas, criando a mala de carrinho. A mudança permitia que os viajantes puxassem a bagagem na vertical, de forma mais confortável e ergonômica.

Por outro lado, a invenção de Sadow esperava uma certa infra-estrutura, ruas planas e bem cuidadas. Você pode rolar estas malas por Paris ou Nova York, mas dificilmente conseguirá usá-las em Amalfi ou Positano, ou nalguma aldeia africana. É de supor-se que antes do calçamento seu uso fosse inviável. Uma coisa é carregar 40 ou mais quilos no ombro. Outra é puxá-los apoiados no chão. Estas malas inclusive identificam o desenvolvimento econômico dos países dos que a portam. Mala de rodinhas é coisa do Ocidente. Se você vê alguém num aeroporto com malas quadradas e de alça, pode estar certo que ele é ressortissant da Bósnia, Chechênia ou de algum país árabe ou africano.

Minha primeira viagem, em 1971, eu a fiz com uma dessas malas de imigrante. Pesava uns 25 quilos e sofri não pouco com ela pelos trens da Europa. Inexperiente, levei roupa em excesso, calças e blusas que sequer cheguei a usar. Lembro que, ao desembarcar em Barcelona, carregadores me ofereceram seus serviços. Naqueles anos, a Espanha ainda não era rica e existiam carregadores. Com arrogância de jovem, respondi: “Gracias, señor, soy joven y fuerte”. “Que Diós le mantenga así”, respondeu-me o carregador.

Mas não manteve. Hoje, que já não sou jovem nem forte, não encontramos mais carregadores de malas na Europa. Mas existe a mala de rodinhas. Isso sem falar que a vida me ensinou a viajar. Resolvo minha bagagem para um mês com seis ou sete quilos, no máximo. Um par de calças no corpo, outro na mala. Mais umas quatro ou cinco camisas, alguma blusa conforme a estação, meias e cuecas. Pra que mais? Suja uma peça, mando lavar no hotel. Sapatos vão nos pés. Abrigo mais pesado vai no corpo. A rigor, dispensaria as rodinhas. Mas há a volta. E livros pesam.

O século passado teve grandes achados, que nos tornaram a vida mais fácil. Máquina de calcular, zíper, microondas, computador, celular e outros que agora não me ocorrem. Mas a mala de rodinhas foi sem dúvida um dos mais importantes.