¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, outubro 19, 2010
 
JORNAL GAÚCHO ASSUME
VIGARICE DO FENG SHUI



Comentei há poucos meses. Em janeiro de 2004, a ex-prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, sancionou lei que permite a oferta, na rede de saúde, de "terapias naturais" não reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina, como aromaterapia e cromoterapia, fitoterapia (tratamento com plantas), terapia floral, geoterapia (terapia com terra, argila, barro), e até a iridiologia.

A vigarice tornou-se oficial e arrisca ser regulamentada. Há um projeto no Congresso Nacional que pretende regulamentar a profissão de terapeuta naturista, entendida como um “profissional da área de saúde, que se utiliza dos recursos primordiais da natureza e do fluxo de energia vital que permeia e anima o ser humano com a finalidade de manter ou restabelecer a saúde do indivíduo”.

A profissão seria exercida por profissionais devidamente qualificados em cursos de Terapias Naturais, em nível médio ou de graduação, reconhecidos por órgãos competentes ou portadores de certificados ou diplomas de curso congêneres por instituições estrangeiras, revalidados na forma da legislação brasileira em vigor. Ou seja, mais uma universidade formadora de vigaristas está prestes a surgir no Brasil.

Nada de espantar, em país em que a Universidade de Brasília (UNB) mantém um curso de Astrologia. Promovido pelo Núcleo de Estudos dos Fenômenos Paranormais, o curso se dedica ainda a outros temas do gênero, como ufologia e conscientologia, seja lá o que isto quer dizer. As lições de astrologia duram quatro meses. Os estudantes, a maioria com diploma universitário, vêm das mais diversas áreas - da psicologia à física.

Comentei na ocasião que com a regulamentação da vigarice, sobra mercado também para o magistério da vigarice. Do jeito em que marcha esta mania de regulamentações, qualquer dia teremos a profissão de instalador de feng shui, de preparador de despachos nas encruzilhadas, de especialista em florais de Bach, pajés e feiticeiras.

Para a imprensa, feng shui já adquiriu o status de ciência. Não passa semana sem que um jornal dedique eruditos artigos a esta superstição oriental tão em voga no Ocidente. Raras vozes se erguem contra o obscurantismo. Mas sempre há quem manifeste sua indignação. De mãos amigas, recebo carta de protesto ao jornal Zero Hora de Porto Alegre. Como a carta certamente não será publicada, a reproduzo nesta bitácora:

Prezados senhores:

Sou leitora assídua do caderno "Casa & Cia" e aproveito várias sugestões ali colocadas. Porém, no caderno de hoje, 19.10.2010, fiquei surpresa com a cobertura dada ao obscurantismo e às trevas na matéria "Feng Shui". Como se estivéssemos na Idade Média, ali se aconselha a não colocar espelhos no quarto, refletindo a cama, "para evitar sobressaltos", além de advertir que espelhos com manchas poderão induzir a pessoa que nele se olha a concluir que "sua aparência tem problema".

Também se recomenda desligar os aparelhos elétricos do quarto uma hora antes de dormir, para "dissipar a energia", além de indicar que o rádio-relógio deverá ficar distante um metro da cabeceira, pois poderá "gerar estresse e dificuldade para acordar".

Segue dizendo que a cor amarela "atrai doença", verde e azul atrai "fofoca e confusão" e vermelha (pobres colorados!) atrai "estagnação, atraso em projetos e energia desequilibrada". Conclui com a pérola seguinte: "lençóis vermelhos criam dificuldade para dormir ou induzem sono agitado". Saibam que dormi, esta noite, sobre lençóis vermelhos e não ocorreu nada de anormal em meu sono.

A pá de cal ocorre quando a "sábia" diz que colocar imagens de pares ou casais de elementos ativam, energeticamente, a busca de um parceiro. Quanta bobagem! Quanto trabalho e dinheiro o laboratório Pfizer teria poupado ao criar o "Viagra", não? A autora já ouviu falar em hormônios, desejo, tesão, atração, etc?

A autora do "laudo" (cruzes!) invade as áreas médicas e comportamentais sem o menor pudor, passando com o trator da ignorância sobre a ciência e o conhecimento. E o pior de tudo, com o beneplácito de um jornal nacionalmente reconhecido. É uma lástima.

Atenciosamente,

Laís Legg da Silveira Rodrigues - médica psiquiatra


Não é só a Zero Hora, minha cara Laís. Qual grande jornal não tem hoje uma coluna de horóscopos? A bem da verdade, até eu já tive meus dias de astrólogo. Quando comecei no jornalismo, no Diário de Notícias, de Porto Alegre, lá pelas tantas faltou horoscopista. O editor me pediu que interpretasse os astros. Adorei a nova função. A rigor, deveria reproduzir horóscopos de edições passadas. Como não vivíamos na era digital, do copy and paste, eu tinha de datilografar tudo de novo. E se tinha de datilografar, não me furtaria a exercer minha criatividade.

Quem lesse meus horóscopos não sairia de casa. Eu previa tempestades, desastres, chuva de canivetes para todo leitor. Me diverti à beça naqueles dias. Certa vez, eu ria e datilografava freneticamente, quando seu Olinto, o editor, quis saber porque ria tanto. “É que estou fazendo o horóscopo”.

Naquela noite, terminou minha carreira como astrólogo.