¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, outubro 29, 2010
 
SUPREMO APEDEUTA RIDES AGAIN


Sem dúvida alguma, ele é um fenômeno de comunicação. A imprensa lhe confere o direito de proferir qualquer despautério impunemente. Hoje, em São Paulo, na 26ª edição do Salão Internacional do Automóvel, comentando as declarações sobre o aborto do cabo eleitoral vaticano de Serra, disse Lula:

"Não vejo nenhuma novidade na declaração do Papa. Esse é o comportamento da Igreja Católica desde que ela existe. Se você for ver o que a Igreja Católica falava há 2 mil anos, ela falava exatamente o que o papa falou”.

Espírito de síntese é o que não falta ao Supremo Apedeuta. Conseguiu resumir em três frases um amontoado de bobagens. Jornalista algum comentou esta solene besteira. Ainda no início deste mês escrevi que dois dos campeões da Igreja, são Tomás e santo Agostinho, eram favoráveis ao aborto. Segundo Agostinho (séc. IV), chamado pela Igreja de Doutor da Graça, só haveria aborto pecaminoso quando o feto tivesse alma humana, o que só aconteceria depois de o feto ter uma forma humana reconhecível. Isto é, só a partir de 40 dias após a fecundação, quando é infundida no embrião a "alma racional", se pode falar em pessoa.

Para o Doutor Angélico (séc. XIII), como os católicos chamam o aquinata, a chegada da alma ao corpo também só ocorre no 40º dia de gravidez. A posição de Aquino sobre o assunto foi aceita pela igreja no Concílio de Viena, em 1312. Foi em pleno século XIX, em 1869 mais precisamente, que o Papa Pio IX declarou que o aborto constitui um pecado em qualquer situação e em qualquer momento que se realize. Ou seja, durante dezoito séculos a Igreja nada teve contra o aborto.

A Igreja nunca falou a mesma coisa de dois mil anos para cá. Mandou Joana d’Arc para a fogueira, em 1431. E canonizou-a cinco séculos depois, em 1920. Ameaçou Galileu com a fogueira, em 1633, e obrigou-o a dobrar-se ante o obscurantismo:

“Eu, Galileu, filho do falecido Vincenzo Galilei, florentino, de setenta anos de idade, intimado pessoalmente à presença deste tribunal e ajoelhado diante de vós, Eminentíssimos e Reverendíssimos Senhores Cardeais Inquisidores-Gerais contra a gravidade herética em toda a comunidade cristã, tendo diante dos olhos e tocando com as mãos os Santos Evangelhos, juro que sempre acreditei que acredito, e, mercê de Deus, acreditarei no futuro, em tudo quanto é defendido, pregado e ensinado pela Santa Igreja Católica e Apostólica. Mas, considerando que (...) escrevi e imprimi um livro no qual discuto a nova doutrina (o heliocentrismo) já condenada e aduzo argumentos de grande força em seu favor, sem apresentar nenhuma solução para eles, fui pelo Santo Oficio acusado de veementemente suspeito de heresia, isto é, de haver sustentado e acreditado que o Sol está no centro do mundo e imóvel, e que a Terra não está no centro, mas se move; desejando eliminar do espírito de Vossas Eminências e de todos os cristãos fiéis essa veemente suspeita concebida mui justamente contra mim, com sinceridade e fé verdadeira, abjuro, amaldiçoo e detesto os citados erros e heresias, e em geral qualquer outro erro, heresia e seita contrários à Santa Igreja, e juro que no futuro nunca mais direi nem afirmarei, verbalmente nem por escrito, nada que proporcione motivo para tal suspeita a meu respeito."

Foi só no ano 2000, quase quatro séculos depois, que o papa João Paulo II pediu desculpas por todos os erros da Igreja cometidos nos últimos dois mil anos, inclusive o julgamento de Galileu.

A Igreja muda, sim senhor. No século XIV, um tratado jurídico escrito por Frei Nicolau Emérico (1320 – 1399), da Ordem dos Pregadores e grande Inquisidor de Aragão, intitulado O Manual dos Inquisidores, regulamentava a tortura para obter confissões de hereges e bruxas. Uma outra obra, de autoria dos dominicanos Heinrich Kramer e Jacobus Sprenger, o Malleus Maleficarum (Martelo dos Bruxos), dedicava-se exclusivamente aos crimes de bruxaria. Se em nossos dias a tortura é escondida nos porões das ditaduras, naqueles radiosos dias do Medievo era regulamentada publicamente por autoridades eclesiásticas.

Muitos eram os métodos para descobrir se uma mulher era bruxa. Os mais populares eram as chamadas ordálias, ou juízos de Deus. Eram de uma simplicidade e eficácia extraordinárias. A acusada era amarrada pelos braços e pernas e jogada num rio. Se não afundasse, era óbvio que era feiticeira: a água, elemento puro, não aceitava a bruxa, elemento impuro. Era então enviada à fogueira. Se afundasse, era porque a água, elemento puro a considerava também pura. Morria afogada. Mas pelo menos sua alma estava salva.

Uma outra ordália era carregar nas mãos, de um ponto a outro, por uma distância de cerca de dez metros, um ferro em brasa. Se a infeliz tivesse as mãos queimadas, era óbvio que era bruxa ou herege. Se não as queimasse, ficava claro que era inocente.

Se a Igreja não mudasse, dona Dilma provavelmente seria jogada ao Tietê, para vermos se boiava ou afundava. Ou teria de descer a rampa do Palácio do Planalto, segurando um ferro em brasas, para provar que não era bruxa. O Supremo Apedeuta deveria dar graças a Deus pelo fato de a Igreja não falar hoje o que falava de dois mil anos para cá.