¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, outubro 27, 2010
 
ZWEI SEITEN?


Em um momento dos mais profundos – e menos conhecidos – de sua obra, escreveu Kafka:

Zwei Seiten
gab es schon und wird es auch immer geben,
zu allen Zeiten,
in allen Dingen:
die Seite hier
und die Seite dort!

Traduzindo:

Sempre houve e sempre haverá,
em todos os tempos
e em todas as coisas,
dois lados:
o lado de cá
e o lado de lá!

Nem sempre, meu caro Kafka! Neste nosso país, justo no momento em que deveria haver dois lados, as eleições, há um lado só. Dois candidatos de extração marxista, ambos ex-militantes de movimentos terroristas, que até hoje não se penitenciaram por seus passados. Pelo contrário, deles se orgulham. Lutaram ombro a ombro com os celerados que pretendiam fazer do Brasil uma republiqueta soviética e hoje se candidatam a salvadores da pátria.

Não há nestas eleições – nem houve nas últimas – aquele outro lado de que falava Kafka. Quando jovem, sempre imaginei que comunismo fosse pensamento dominante na União Soviética, China, Cuba. Certa vez, um bom amigo, o Anibal Damasceno Ferreira, disse-me:

- Janer, tu estás contra toda tua geração.

Na época, meus dias de universidade, não entendi bem a frase. Só fui entendê-la bem mais tarde. Minha geração toda era comunista. No curso de Filosofia, meus colegas – e a maioria de meus professores – eram comunistas. Filosofia, aliás, era sinônimo de marxismo. Os professores começavam falando de dialética em Platão para chegar, obviamente, à dialética de Hegel e Marx. Como se o conceito de dialética em Platão tivesse algo a ver com a dialética marxista.

O Brasil sempre teve o coração à esquerda. Desde os anos 30, com a fundação da USP, a maior difusora da peste no país. Como diziam os moleques de 68 em Paris: o fundo do ar é vermelho. Mas se na França o fundo do ar já não é mais vermelho, cá entre nós continua sendo. O muro de Berlim caiu há mais de duas décadas e os brasileiros não têm alternativa alguma a dois marxistas.

Claro que nenhum dos dois candidatos confessaria professar o marxismo hoje. Mas tampouco renegam o marxismo juvenil. Pior ainda: se pretendem católicos desde o berço. Serra beija um terço. Dilma faz o sinal da cruz. Divina hipocrisia.

Desde há muito não há dois lados no Brasil. Neste sentido, os ex-países comunistas tiveram mais sorte que nós. Lá, ninguém quer mais ouvir falar de comunismo. Chez nous, ainda há não poucos malucos messiânicos - vide Marilena Chauí - propondo um futuro socialista para o Brasil. E não só para o Brasil, mas também para a América Latina e Europa.

Continuamos a reboque da História.


PS – A frase com que abri a crônica não é de Kafka coisa nenhuma. É um versinho que ouvi de uma poetisa gaúcha, daquelas que freqüentavam tertúlias no restaurante Dona Maria, em Porto Alegre. Reuniam-se uma vez por mês, no chamado Cafezinho Poético. Eu não perdia nenhum. Divertia-me ver aquelas senhoras macróbias desenrolando um pergaminho e recitando poemas que se pretendiam eróticos.

Pus a frase em alemão porque confere mais autoridade ao texto. Sem falar que a atribui a Kafka. Uma obviedade proferida por Kafka sempre cala fundo. Nem por isso, minha reflexão tem menos sentido.