¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, novembro 22, 2010
 
FANATISMO VIRA VALOR


Há mais de uma década a cidade de São Paulo não via dias como esses: um fim de semana inteiro - e a segunda-feira também - dedicados ao rock. E com atrações que agradam tanto aos "oldies" quanto aos "indies". Quem afirma isto não sou eu. Mas um repórter do Estadão. Ontem, se apresentou no Morumbi o grande apologista das drogas, o tal de McCartney. Que tem repeteco hoje.

A maratona roqueira começou ontem, às 16 horas, com o Festival Planeta Terra, no Playcenter, zona oeste – continua o repórter -. Os palcos receberam desde o rock alternativo da década de 1990 dos Smashing Pumpkins aos moderninhos do Of Montreal, passando pela extravagante dupla australiana Empire of the Sun e os franceses do Phoenix. Ontem também foi a vez de o cantor e guitarrista Lou Reed, ex-Velvet Underground, apresentar-se no Sesc Pinheiros. E do Creedence Clearwater Revisited lembrar clássicos no Via Funchal, na zona sul. E não é só: ao longo da semana, São Paulo ainda vai receber shows dos americanos Scissor Sisters (amanhã), da banda alemã Tokio Hotel (terça) e do guitarrista Jeff Beck (quinta-feira).

Tá tudo dominado. Durante uma semana, a cidade estará infestada pelo rock. Como se não existissem outros gêneros musicais no mundo. Ao que tudo indica, os roqueiros gringos descobriram o mercado ideal de panacas para venderem seus peixes podres. Como aqueles chefs franceses que têm seus restaurantes às moscas em Paris e descobriram aqui o mapa da mina. Isto é aculturamento, submissão à indústria do rock, espírito de rebanho, fanatismo, falta de personalidade.

Teve gente esperando 72 horas na fila para ver o beatle. Mais ainda, uma platéia de 200 bobalhões pagou 1.400 dólares para assistir à tal de passagem de som. Ora, por 1.400 dólares pago uma outra passagem, de ida-e-volta a Paris, onde posso ver coisas bem mais interessantes. Haja fanatismo. Quem diz isso não sou eu. Mas uma mãe cujos dois filhos mais velhos foram atrás das entradas. Ela reconhece que a despesa pesa no orçamento familiar, mas ressalva que “vale a pena pelo fanatismo”. De repente, fanatismo virou valor. Devo confessar que essa eu ainda não tinha ouvido.

Interlocutores me afirmaram, em função destas crônicas, que o rock atravessa gerações, tanto que atrai macróbios como seus filhos e netos. Em outra reportagem, leio declarações de uma mãe, cujos três filhos, de 18, 15 e 13 anos foram com ela ao Morumbi. Segundo ela, ninguém trouxe ninguém ao show, “todos resolveram vir”. Os pais eram fãs e isso passou para os filhos. É óbvio. Pais que fumam têm filhos que fumam. Pais que lêem têm filhos que lêem. Pais que curtem óperas têm filhos que curtem óperas, ora bolas.

Você já viu uma grande cidade no mundo dominada pelo rock no espaço de uma semana? Só no país dos botocudos mesmo. Estou cercado pelo rock. No fundo, não posso queixar-me. São Paulo é grande e não ouvirei uma única estridência dos roqueiros. Em meu bairro não ouço nem carnaval. Mas é triste ver uma cidade que se pretende culta prestando culto ao show business.

Vontade de fugir. Mas toda vez acomete esta vontade, lembro de um antigo filme, cujo título já não recordo. Alienígenas invadem a terra e começam a tomar o corpo dos terráqueos. O herói se insurge contra a invasão, mas não consegue contê-la. Quando o planeta está totalmente dominado, ele diz à sua companheira: "Vamos fugir para algum lugar onde eles não tenham chegado". Ela, já com a voz rouca dos contaminados, pergunta: "Para onde?"

Para onde já sei. Vou lá para as plagas de onde eles vieram. Se estão aqui, é porque não estão lá. Com aqueles 1.400 dólares que os fanáticos pagaram para assistir à tal de passagem de som, vou para Paris. Pagando ida-e-volta, bem entendido. De Paris, vou pegar a Primeira-Namorada em Londres, um dos centros emissores da peste. De Londres, seguimos para Dublim. Segundo eruditos do gênero, o berço do tal de U2. Que seja. Não é atrás deles que vou, mas em busca dos bons botecos da Irlanda.

“Não poderias ir a Dublim sem pelo menos ouvir algo do U2!”, escreve-me uma amiga. Posso sim. Assim como não tinha idéia do que fosse o tal de U2, tampouco tinha idéia de que fossem de Dublim. É espantoso o que há de coisas no mundo que desconheces, diz-me um outro interlocutor. Tem toda a razão. Mas o universo das coisas que desconheço é muito maior do que ele imagina. Só conheço o que me interessa. Nestes dias de massificação, é muito pouco o que me interessa. Dublim, para mim, é a cidade de Swift, Oscar Wilde e – vá lá! – James Joyce. Ainda não conheço Dublim. Mas quem me conhece e conhece a cidade, diz que vamos nos apaixonar.

De Dublim, seguimos para Berlim. Faz vinte anos que não a visito. Estive lá em 90, para quebrar alguns cacos do muro. De 90 para cá, morto o comunismo e reunificada a Alemanha, Berlim se transfigurou. Esta cidade nova, ainda não conheço.

De Berlim volto pra Paris, que ninguém é de ferro. Vou rever meus botecos diletos, amigos e amigas. Há muitas coisas mais interessantes a se fazer no mundo com 1.400 dólares do que ouvir uma hora de ensaio de uma banda. Claro que a viagem sairá bem mais cara. Mas por 1.400 já atravessei o oceano.