¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, novembro 29, 2010
 
HABEAS FELICITATEM?


Primeiro, foi o Butão, aquele pequeno país isolado no Himalaia, cujo rei, Sua Majestade Jigme Singye Wangchuck – o primeiro marajá da dinastia dos Wangchuk a auto-intitular-se rei – decidiu abandonar os obsoletos índices de Produto Interno Bruto e substitui-lo por um índice de Felicidade Interna Bruta. Abaixo o PIB, viva a FIB. Sua jogada de marketing parece ter agradado às eternas e azedas esquerdas, que acham que PIB não quer dizer nada. Não que acreditem nisso, mas como o PIB das nações capitalistas sempre foi superior ao das socialistas, então o PIB “é do mal”.

Segundo pesquisa feita há quatro anos pelo economista britânico Richard Layard, em Happiness: Lessons From a New Science, a felicidade residiria no reino budista do Butão. Segundo Jigme Singye Wangchuck, quanto mais uma pessoa assiste televisão, menos feliz ela é. A solução então é simples: retire a televisão da sala e suas chances de ser feliz aumentarão. Sua Majestade parece ter conseguido vender ao Ocidente a idéia de que, para a felicidade geral das nações, é melhor renunciar ao presente e encerrar-se nas trevas do passado. Sob o repúdio à televisão, o livro esconde uma tese safada: informação é infelicidade. O PT, penhorado, agradece.

Agora é o Reino Unido, que pretende criar um índice que determinará o maior ou menor grau de felicidade dos súditos de Sua Majestade. Quinta-feira passada, foi lançada uma consulta pública para definir como fazer uma pesquisa para medir o grau de felicidade. O governo quer saber o que torna felizes os cidadãos britânicos. Dinheiro, emprego, saúde, bom relacionamento com amigos e parentes, sensação de que vive num lugar seguro, atividades culturais, meio ambiente preservado...

A universidade de Leicester já havia elaborado, há quatro anos, o que seria o primeiro mapa mundial da felicidade, em um estudo que reuniu 177 países. Segundo este, os dinamarqueses e os suíços são os mais felizes. Depois destes, vêm os cidadãos da Áustria, Islândia, Bahamas, Finlândia e Suécia. Zimbabuanos e burundineses estão nos postos mais baixos e os brasileiros em 81º lugar. Dentro de meu conceito, já não digo de felicidade, que é muito relativo, mas de bem-estar, parece-me um mapa sensato. Que a vida é agradável na Dinamarca e Suíça, disto estou ciente. Que deve ser dura no Zimbábue e Burundi, disto também estou ciente, mesmo sem jamais ter postos os pés naquelas plagas.

Por outro lado, a New Economics Foundation e a ONG Friends of Earth criaram o Happy Planet Index, segundo o qual a felicidade teria estabelecido sua morada no arquipélago de Vanuatu – 83 ilhas no Pacífico, com 209 mil habitantes, na maioria pescadores e agricultores que vivem numa economia pouco além do nível da subsistência. Os vanuatuenses tiveram a melhor média de três indicadores básicos: esperança de vida ao nascer, bem-estar humano e nível dos danos ambientais causados ao país.

Nesse índice, o Brasil ficou em 65º lugar, atrás da Colômbia, da Argentina, do Chile e do Paraguai – até de Bangladesh. Os Estados Unidos ficaram com o 150º lugar, um dos últimos entre 178 países. O Happy Planet Index quer evidenciar que "não é necessário esgotar os recursos naturais da Terra para se ter uma vida relativamente longa e feliz". Seus critérios são, no fundo, um panfleto contra tudo o que de bom o Ocidente oferece.

Os britânicos estão querendo medir o imensurável. Ora, tudo depende de ambições. Certa vez, eu conversava com uma balconista que servia cafezinho no terminal de Cumbica, na Praça da República. É um trabalho duro, oito ou mais horas em pé, no espaço exíguo da cafeteria. Ela estava feliz. “Adoro trabalhar aqui. Se não tivesse este trabalho, estaria no cabo da enxada, na roça”. É o tipo de trabalho que não me faria feliz, e muito menos o leitor. Para ela, era o paraíso.

Minha idéia de felicidade é um pouco mais ampla. Eu me sentiria terrivelmente deprimido se não pudesse ir a Paris quando quero ir a Paris. Conheço não pouca gente que se deprime por muito menos. Porque não tem casa na praia, porque não tem o carro do ano, Com perdão pela obviedade, felicidade é algo muito relativo.

Há quem seja feliz com muito pouco. Há muitos anos, aqui em São Paulo, numa fria madrugada de agosto, vi um mendigo que ria sozinho, atirado na rua, apoiado em uma garrafa de cachaça. “Como eu sou feliz”, dizia. E não seria eu quem duvidaria de que ele fosse feliz. Há quem se sinta desgraçado quando seu time perde um campeonato. E isto ocorre até mesmo com pessoas sem nenhum problema econômico. FIB é relativa. Enquanto que o velho PIB é objetivo e nos dá bons indícios da FIB.

Diria que os britânicos seriam bem mais precisos se medissem os índices de infelicidade. Ser infeliz é algo bem mais preciso. É infeliz toda pessoa que porta doença grave, que está num hospital ou que perdeu amigos ou parentes. Ou que não tem emprego, ou vive acossad por dívidas, ou tem um filho drogado ou criminoso. Isso sem falar que felicidade ou infelicidade são estados cambiantes. Se hoje estou feliz, posso estar profundamente infeliz amanhã. Isso nem depende de condições econômicas, como de fatos totalmente aleatórios, como um acidente ou morte em família. Uma crise econômica pode tornar todo um país infeliz do dia para a noite. Que sentido tem então medir o que muda com os ventos?

A moda, pelo jeito, veio para ficar. Segundo os jornais, a idéia foi sugerida pelo Nobel de Economia Joseph Stiglitz, que diz que os países precisam colocar menos ênfase em números de indústria e comércio e mais no efeito que isso provoca na sociedade. França e Canadá também estudam seu índice da felicidade. No Brasil, fomos mais longe.

Tramita no Congresso uma proposta de emenda constitucional criando nada menos que o direito à felicidade, do senador Cristovam Buarque. O ócio é a mãe de todos os vícios, dizem as gentes. Tivessem os senadores trabalho com que se ocupar, certamente não estariam propondo bobagens.

Se o direito à felicidade é algo garantido por lei, que recursos serão concedidos ao cidadão infeliz? Poderá entrar com um habeas felicitatem contra o Estado?