¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, novembro 25, 2010
 
SOBRE MINHA OJERIZA


Meu caro professor Vinicius,

Discordar faz parte da vida. O mundo seria monótono se não houvesse quem discordasse. Não diria exatamente que somos de gerações diferentes, afinal convivemos na mesma época. O conceito de gerações é algo bastante relativo. Por outro lado, estou com sessenta. Leio depoimentos de outros sexagenários que se espantam pelo fato de eu não ter curtido rock. Que posso fazer? O rock não passou por minha juventude. Me falas para ligar o rádio.

Eis a questão: nunca tive rádio. Até que tenho hoje, veio acoplado no DVD. Mas jamais o liguei. Escutei rádio quando vivia no campo, era o único meio de comunicação que tínhamos com o mundo. Depois, nunca mais. Televisão, muito menos. Minha primeira televisão, eu a comprei aos 30 anos, em 77. Estava em Paris e me pareceu ser interessante ter uma TV para habituar-me ao francês e conhecer melhor o país em que passei a viver. Hoje, tenho uma, mas quase não a ligo. E quando a ligo, não é para ver televisão, mas filmes ou DVDs. Essa terá sido uma de nossas diferenças.

Se conheceste filosofia e literatura só na faculdade, eu as conheci antes. Quando fiz o vestibular para Filosofia, já havia lido Platão, Descartes, Montaigne e Cervantes. Y algunas cositas más. Eu comecei pelo livro e vivi mais ou menos afastado do mundo audiovisual.

Vamos por partes. Achas que revoluções se fazem com slogans. Nada disso. Slogans são para os panacas que seguem os que pensam. Quem pensa, escreve livros. Não há revoluções sem livros nem pensamento. Para o povão, se joga algumas pílulas e a massa ignara vai atrás. “Proletários de todo mundo, uni-vos” é a síntese panfletária de uma obra de quatro tomos. Não se faz revolução sem um monte de idiotas seguindo atrás. Marx que o diga. Eu também uso o Twitter. Mas não me sinto regredindo aos grunhidos dos quais fala o Saramago. Em meus twits, remeto a crônicas que são bem mais que um grunhido.

É curioso observar que quase sempre se associa a palavra revolução a acontecimentos políticos ou sociais, e se deixa de lado revoluções silenciosas bem mais profundas, como a do vidro, do carro ou dos chips. Estas sim, transformaram o mundo. Sem sangue nem massacres. Sempre se vê Marx como um revolucionário. Mas quem transformou mesmo o mundo foi Ford. O mundo proposto por Marx morreu. Ford, sem ter escrito sequer um livro, modificou definitivamente a geografia do planeta.

Sim, eu conheço esse anexo que me envias. Os gêneros são tantos que para conhecê-los todos se exige uma erudição que nem se pede para conhecer ópera, que existe há quatro séculos. O que só comprova o que afirmei, que rock é palavra-ônibus. A palavrinha vende bem e cada banda foi chamando de rock qualquer coisa que produzisse.

Não odeio rock. Aliás, não odeio nada. Ódio é sentimento que não cultivo. Mas tenho profunda repulsa a multidões. Se um dia for ver uma ópera e encontrar cinqüenta mil pessoas pela frente, dou meia volta. Boa música não é para multidões. Exige pequenos espaços, silêncio, acústica. Ora, dirás que milhões de pessoas curtem ópera através dos séculos. De fato. Mas atenção: através dos séculos. Público de ópera é no máximo de três mil pessoas. E já é demais. Quando os “três tenores” saíram a cantar em estádios, desvalorizaram o gênero e perderam o respeito do mundo operístico.

Disse que rock é sinônimo de droga. Isso não quer dizer que todo mundo que curte rock é drogado. Conheço muita gente que gosta do gênero e nada têm a ver com drogas. Mas não podes negar que a droga consumiu não poucos roqueiros, nem que show de rock seja a festa do tráfico. Quando uma estrela assume a droga, por um mimetismo qualquer, seus fanzocas também a assumem. Fala quem entende do assunto, Keith Richards, o guitarrista dos Rollings Stones: “Se não existissem drogas, não existiria o rock’n’roll. Isso é fato”.

Quando afirmei que pais que fumam têm filhos que fumam, isso é a probabilidade maior. Não quer dizer que todos os filhos fumem. Sei muito bem disso. Meu pai era fumante, toda minha família fumava e eu nunca fumei. Mas hás de convir de que o comportamento paterno influencia muito a vida dos filhos. Sabes muito bem disso. Não foi por acaso que tua filha, em seus sete anos, pôs em pânico uma professora quando disse, alto e bom som: Deus não existe.

Se tuas alunas de periferia não conheceram os Beatles nem Elvis Presley, cá entre nós, meu querido Vinicius, não perderam nada. Eu também não os conheci e não sinto lacuna nenhuma em minha vida. Mais grave, isto sim, é elas não conhecerem – como certamente não conhecem – Platão, Cervantes, Swift, Dostoievski ou Orwell. Beatles ou Presley não são instrumentos pedagógicos. Não fazem falta alguma na educação de ninguém. Por outro lado, não vejo rock como contracultura. Que contracultura é essa que uniformiza milhões e torna milionários seus cultores? Rock, hoje, é stablishment puro. Ai de quem diga algo contra. Por exemplo, eu.

Não, não conheço a Academia Sibelius. Mas conheço Sibelius, aliás já visitei o soberbo monumento a ele dedicado em Helsinki. O coitado deve estar se revirando em sua tumba. Como dizia Nietzsche, de nada adianta cercar uma boa doutrina. Os porcos criam asas. A Filarmônica de Berlim gravou com roqueiros? Pode ser. Eu a preferia quando gravava com Karajan e Anne-Sophie Mutter.

Bono Vox para o Nobel da Paz? Roqueiros fazendo campanhas pela paz são oportunistas que só faturam com tais shows. Não vão ao front, não combatem e ganham fábulas com isso, no conforto de seus camarotes. Mesmo que nada cobrem por um concerto, ganham milhões de volta em prestígio e vendas. Mais ou menos como a Lady Di, em sua campanha anti-minas. Nunca desarmou mina alguma, nunca esteve em um campo minado, mas ganhou prestígio posando ao lado de meninos aleijados pelas minas. Quanto aos profissionais que arriscam suas vidas o tempo todo desarmando minas, estes jamais merecem manchetes.

Ou o papa. A cada ano se repete uma manchete nos jornais: “Papa faz apelo pela paz”, seja qual papa for. Ora, apelos pela paz eu também faço. Desde que isso não mexa em minha rotina. Por outro lado, prêmio Nobel da Paz é coisa concedida a vigaristas, embusteiros e terroristas. Vamos lá: Arafat, Dalai Lama, Luther King, Rigoberta Menchú, madre Tereza de Calcutá.

Prêmio Nobel da Paz nunca foi critério para mim. E muito menos condecorações da família real britânica, uma estirpe de parasitas que não governa e só serve para achacar o Estado. Alguma concessão há de fazer a rainha ao gosto popular, que mais não seja para fazer um afago aos contribuintes. O casamento do príncipe William, em abril próximo, vai custar aos cofres públicos nada menos que 5,8 bilhões de euros. Ou seja, 13,3 bilhões de reais. Para que serve um príncipe? Que me conste, para posar para cartões postais. Me espanta que para ti uma honraria concedida por uma monarquia decadente possa significar algo.

É possível que, nessa geléia geral que se convencionou chamar de rock, alguma coisa tenha algum valor. Mas não vou procurá-las. Para criticar é preciso conhecer? Ora, não sou crítico musical e não conheço quase nada do universo do rock. Mas não teci críticas ao rock, e sim ao comportamento de rebanho de seus adeptos. E isto eu conheço bem. Está nos jornais, na televisão.

Seja como for, não vou sair a pesquisar tudo para saber o que nesse tudo há de valioso. Não vou ler Harry Potter para saber se gosto ou não de Harry Potter. Não penso visitar o Quirguistão para saber se gosto ou não do Quirguistão. Eliminei de minhas viagens boa parte do mundo, sem ter ido a tais partes. Da mesma forma, não vou pesquisar bandas para saber se gosto ou não delas. Mas não me recusaria a dar uma olhadela em Monteverdi, por exemplo, para saber se gosto ou não de Monteverdi.

Sigo pelas trilhas que me agradam. São tantas que mal consigo percorrê-las. Perde-se muito tempo na vida querendo olhar o todo para se saber de que parte desse todo se gosta. Ora, a vida é curta. Sem falar que meu tempo escasseia.

Minha ojeriza ao rock é a mesma que nutro por futebol. Nunca entrei num estádio, não suporto estádios. Nem multidões. É a mesma ojeriza que tenho por best-sellers. Dizes que pessoas tapadas não conhecem nada de rock. Ora, eu nada conheço e de modo algum me considero tapado. Tu me conheces e sabes que não sou tapado.

E nisto estamos, meu caro professor Vinicius. Discordar é salutar. Esteja a gosto. Se alguém concorda com tudo que afirmo, não estou conversando, mas produzindo eco. Não gosto de rock, nem das multidões que o curtem. Isso não quer dizer que não goste de quem gosta de rock. Minha filha é roqueira, a mãe dela também. Gosto delas. Como também de ti.

Mas não do rock. Abraço.