¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, novembro 18, 2010
 
UMA RAMBLA PARA OS NÓIAS


Um dos encantos de Barcelona são as Ramblas, uma espécie de calçadão para pedestres, margeadas por vias onde os carros passam, que vai da praça Catalunha até o porto. Em seu entorno estão o Barrio Gotico e restaurantes soberbos, como o Caracoles e Mi Burrito y Yo. Ou o Bosc de les Fades, exótico café onde você entra em uma floresta encantada. Isso sem falar no Mercat de la Boqueria, uma festa para os olhos. É certamente a avenida mais viva da cidade, tomada por cafés com mesas nas calçadas, quiosques de jornais, de flores e de passarinhos. Mais o show das estátuas vivas que, cá entre nós, já está exagerado. É o que chamo de uma das esquinas do mundo. Quem for a Barcelona não escapa das Ramblas. É um belo início de exploração da cidade.

Descendo da praça Catalunha, chega-se ao monumento a Cristóvão Colombo e ao porto. Do alto de uma torre, o navegador aponta para a América. Você pode rumar à direita e tomar um teleférico até Montjuic, morro de onde se tem uma visão gloriosa da cidade. Nada mais divino como tomar uma cerveja numa manhã de sol, no alto de Montjuic, contemplando o porto e a cidade, as Ramblas e a Sagrada Família. No horizonte, o Tibidabo. É um dos grandes momentos na vida de um viajor.

Para a esquerda, você pode tomar o belíssimo Paseo de Colón, bordejado por marinas. Boa ocasião para beber outra cerveja em um veleiro lá ancorado, contemplando a dança dos mastros dos demais veleiros ao sabor das brisas marinhas. Se continuar pelo Paseo e dobrar de novo à esquerda, você vai cair na Barceloneta, na praia e no Paseo Marítimo. Em meio ao Paseo, você pode fazer uma pausa no Salamanca, o melhor e mais charmoso restaurante de frutos do mar da Catalunha. Continue após o almoço. Sairá da Barcelona antiga e cairá na magnífica Vila Olímpica de Poblenou, construída para as Olímpiadas de 1992.

Deliro. Volto ao real, a São Paulo. Já falei sobre os zumbis da Guaianases, a rua que mais concentra drogados em São Paulo. A Guaianases fica na chamada Cracolândia, nas imediações da Estação da Luz, onde está a Pinacoteca do Estado de São Paulo e a sala São Paulo, uma belíssima sala de concertos que nada fica a dever para as congêneres de Paris ou Londres. É algo assustador. Centenas de mortos-vivos, crianças e adultos, homens e mulheres, enrolados em cobertores e capuzes, cachimbando crack, estão deitados na rua ou por ela perambulam em busca de droga. Nenhum taxista ousa entrar no pedaço. Tudo isto no centro da mais imponente capital do continente.

Pois não é que os urbanistas da Paulicéia querem transformar em Ramblas a Cracolândia? Há anos a Prefeitura insiste que a Cracolândia não mais existe, e sim a Nova Luz. Mas os zumbis que deram nome ao bairro continuam zanzando, trôpegos, pelas ruas. O prefeito jura que não há mais drogados na Cracolândia e os jornais nos mostram centenas deles perambulando pelas ruas, à luz do dia. E fumando crack. E ainda há bobalhões lutando pela liberação das drogas no país.

Leio no Estadão que a rua Vitória, uma das ruas mais degradadas de São Paulo, “será o eixo principal da Nova Luz, espécie de boulevard no qual está previsto calçadão arborizado de 800 metros na faixa central e circulação de veículos em uma ou duas faixas - no projeto, a via é comparada à principal Rambla de Barcelona, rua turística da cidade espanhola. Em toda a área, são 6 quilômetros de vias em que pedestres serão priorizados”.

Os urbanistas vão adiante: “além das ramblas de Barcelona, outros projetos internacionais inspiraram a Nova Luz. O setor cultural e de entretenimento da região - no entorno da Estação da Luz, onde estão a sala São Paulo e a Pinacoteca do Estado e ficará o futuro Teatro da Dança - é inspirado no Campo Santa Margherita, em Veneza, na Itália”.

A sala São Paulo e a Pinacoteca do Estado são duas belas instalações de São Paulo, onde você vai durante o dia com temor e durante a noite com pavor. Os brilhantes administradores da City – como um jornal já chamou São Paulo – ergueram casas dedicadas às artes em pleno mar de drogas. A administração quer recuperar a Cracolândia e está demolindo prédios e planejando uma outra arquitetura. O projeto é louvável. Croquis delirantes nos mostram as ruas da Cracolândia hoje e as ruas futuras, cheias de árvores, bancos e pessoas lindas.

Só tem um detalhe: nada está sendo feito para resolver o problema de viciados em drogas e moradores de rua. Considera-se que isto não é uma questão de polícia, mas de saúde pública. Que os zumbis continuem zanzando pelas ruas. Prestimosos assistentes sociais irão até lá perguntar a eles se querem tratar-se. Se não quiserem, tudo bem. A Constituição garante o sagrado direito de ir-e-vir.

Os brilhantes urbanistas da Paulicéia querem transformar em Ramblas um território de drogados. Mania de imitar Primeiro Mundo, sem perceber o absurdo de tal propósito. No fundo, vão urbanizar um espaço degradado para mais conforto dos nóias.

Porque para ter Ramblas, é necessário uma Barcelona em torno.