¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, dezembro 10, 2010
 
ANARQUISTAS DE TODO
MUNDO, ANIMAI-VOS!



Paris é cidade que reúne muita inteligência por metro quadrado. Ocorre que a estupidez é universal. Prova disto são as declarações do ex-jogador francês de futebol Eric Cantona, um ídolo na França e na Inglaterra, onde fez carreira. Pois não é que o ídolo destruir o sistema bancário francês, nada menos que isso? Em outubro passado, Cantona sugeriu em um vídeo que as pessoas retirassem todo o dinheiro que mantêm nos bancos. Na semana passada o ex-craque prometeu, em entrevista ao jornal Libération, que faria a sua parte nesta última terça-feira.

"A revolução é muito simples de ser feita hoje. Ao invés de ir às ruas fazer quilômetros de manifestações, você vai ao banco da sua cidade e retira todo o teu dinheiro", conclamou o ex-atacante da seleção francesa e ídolo do Manchester United, argumentando que se 20 milhões de pessoas decidem fazer o mesmo, o sistema bancário desmoronaria. "É uma revolução sem armas, nem sangue. Estou constatando essa estranha solidariedade que está nascendo, então, sim, no dia 7 de dezembro, eu irei ao banco", disse o animal.

O espantoso é que a imprensa francesa tenha feito uma polemica em torno a tais sandices. A criação do sistema bancário representou uma revolução extraordinária na organização da sociedade e da vida pessoal de cada cidadão. Ninguém precisou mais guardar dinheiro em cofres ou colchões, muito menos carregar um saco de moedas ou cédulas ao fazer uma transação importante. Leio nos jornais que os meios de comunicação franceses repercutiram a declaração e em poucas horas os internautas começaram a se manifestar em sites e em redes sociais, afirmando que fariam o mesmo.

"O dinheiro dos bancos é o nosso dinheiro e nós o ganhamos com muito suor. Temos o direito de fazermos o que bem entendermos com ele", disse Jean-Jacques Saliou, uma das pessoas que promete acompanhar Cantona na "revolução". "Não podemos continuar pagando os salários milionários dos grandões das finanças sem dizer nada", afirmou Evelyne Maller.

Curiosamente, jornalista algum perguntou a Cantona se ele se disporia a ir buscar na sede de seu clube seus salários, que certamente farão bom volume nos bolsos. Se toparia ir até os PTT com euros em punho pagar sua conta de telefone, até a EDF pagar sua conta de luz. Ou portar uma mala de papel-moeda para pagar um carro ou um apartamento. A proposta do ex-jogador. que pode até fascinar anarquistas saudosos,é de uma precariedade total. O que espanta em tudo isto é que até altas autoridades tenham se preocupado com tais bobagens.

Christine Lagarde, a ministra da Economia, comentou o assunto, dizendo que "existem pessoas que jogam magnificamente futebol, mas eu não me arriscaria. Acho que cada um tem de se concentrar nas suas competências". O ministro do Orçamento, François Baroin, por sua vez, foi mais duro nos comentários, chamando a iniciativa de "grotesca e irresponsável". "Cantona como conselheiro financeiro não pode ser levado a sério. Cada um na sua área", disse Baroin.

Espanta ainda mais que esta idéia estapafúrdia esteja fazendo fortuna além-fronteiras. Segundo o Libé, na Bélgica, a cenarista Géraldine Feullien abriu um site, Bankrun2010.com, através do qual espera conquistar seguidores no mundo inteiro. O endereço tem tradução em oito línguas. "Com ou sem a nossa contribuição, esse sistema bancário atual irresponsável vai explodir mais cedo ou mais tarde. O melhor é nos prevenirmos e agirmos desde já, guardando o nosso dinheiro em casa ou em bens", defendeu Feuillien. "Independente dos resultados desta ação, as pessoas terão a ocasião de pensar sobre o imenso golpe que representa o sistema monetário de hoje. É o momento de se exigir que se construa um outro que seja verdadeiramente a serviço do cidadão."

Bem que Cantona podia ser mais radical em sua proposta. Que tal voltar ao escambo. Eu jogo futebol sem receber um vintém e meu time ergue minha casa. Vou a padaria e troco as laranjas de meu pomar por pães. Vou à Fnac e troco À la recherche du temps perdu por uma caixa de CDs do Jacques Brel.

Mas ainda mais espantoso é ver economistas preocupados com a idéia estúpida. Segundo Jézabel Couppey-Soubeyran, da Universidade Paris 1 - Panthéon-Sorbonne, se 20 milhões de pessoas decidissem retirar o seu dinheiro ao longo de alguns dias, essa atitude colocaria os bancos em risco. "Não é o mais adequado a se fazer para se rebelar, porque, por mais descontentes que estejamos, o nossos sistema todo ainda depende dos bancos." Sem liquidez, os bancos cessariam os pagamentos e as poupanças dos correntistas seriam as primeiras prejudicadas. Os juros explodiriam e provocariam a alta das taxas de inflação, levando a economia inteira de um país ao desequilíbrio, já que os financiamentos - e consequentemente, os investimentos - ficariam suspensos. A revolução prejudicaria, sim, os bancos, que seriam obrigados a decretar falência. Mas a medida extremista também afetaria gravemente todo o restante da sociedade.

Anarquistas de todo mundo, animai-vos! A estupidez, além de universal, é eterna.