¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, dezembro 26, 2010
 
Recordar é viver:
A LONGA LINHAGEM


Joinville, A Notícia, 26.11.89


Pois andei perambulando pela última Feira do Livro de Porto Alegre, com a alegria de quem é um pouco partícipe do Nobel de Literatura, já que me coube a honra — e as peripécias — de traduzir ao brasileiro as duas únicas obras publicadas entre nós de Camilo José Cela, A Família de Pascual Duarte e Mazurca para dois Mortos. Quando um Nobel surpreende e sua obra é totalmente inédita no Brasil, não falta quem reclame de nossa indigência cultural, falta de sensibilidade editorial e resmungos do gênero. Bueno, agora o autor tem traduzidas duas de suas criações fundamentais que, diga-se de passagem, pouca atenção mereceram, tanto de parte da crítica como de parte dos leitores. E muito menos dos livreiros.

Na Feira do Livro, inaugurada quase junto com a premiação, não havia um só exemplar de Cela. Mais ainda: não o encontrei em livraria alguma de Porto Alegre. Encontrei, em compensação, livrinho dos mais significativos, particularmente nestes dias que correm. Falo de Berlim: Muro da Vergonha ou Muro da Paz?, edição da L&PM, com terna homenagem em suas primeiras páginas a Luiz Carlos Prestes, esta alma penada que parece ter perdido a noção da época em que vive, ainda hoje encaracolado em seu stalinismo obtuso, primário e criminoso.

Se viajar ilustra, como dizem as gentes, há pessoas que mesmo dando dez voltas ao mundo não se deixam impregnar do mínimo verniz cultural. É o caso de Antônio Pinheiro Machado Netto, autor desta sintomática ode à tirania. Terá o livro envelhecido tão cedo ou terá sido seu autor sempre senil? Senão, vejamos.

Tendo visitado por duas vezes a URSS, a convite do Comitê dos Partidários da Paz na União Soviética, e uma terceira vez a Tchecoeslováquia, pela Assembléia pela Paz e pela Vida, e sentindo-se na obrigação de pagar suas mordomias em alguma moeda — desde que não dólares — nosso turista apressado entoa loas ao muro que durante três décadas constituiu o mais sinistro e desumano erigido pelo comunismo russo. Pincemos, cá e lá, alguns trechos desta cretina defesa do totalitarismo. O livro, é bom lembrar, foi editado em 1985. Se ainda entendo de matemática, há apenas quatro anos. Vamos lá.

Hoje não se pode mais falar em reunificação da Alemanha, pura e simplesmente, com fundamento tão somente na língua e história comuns. (...) Não se pode, todavia, afastar a hipótese de, num futuro mais ou menos remoto, vir a ocorrer a unificação (como aconteceu no Vietnã). Esta hipótese, porém, só pode ser considerada se na chamada Alemanha Federal — RFA — passar a existir também um regime socialista.

Uma das maiores bobagens veiculadas no Brasil sobre o Muro de Berlim é que ele foi erguido para evitar as fugas de alemães da RDA para a parte oeste de Berlim. Esta asneira é veiculada até por pessoas que gozam de alguma credibilidade no Brasil, e por órgãos de comunicação, que se apresentam como veículos fiéis à verdade.

Todos os epítetos lançados contra o muro — afronta à liberdade, vergonha, etc., etc. — escondem apenas o ressentimento e a frustração dos fazedores de guerra que, naquela linha de fronteira, viam o começo da terceira guerra mundial por que tanto sonham, e para cujo deflagrar tudo fazem, com vistas a salvar o capitalismo da crise irreversível em que está mergulhado.

É natural que na RDA e nos demais países socialistas a tendência seja a diminuição do índice de criminalidade, de vez que as infrações penais que têm origem na miséria, numa vida difícil e atormentada, com dificuldades econômicas e financeiras, tendem a desaparecer por completo nos países socialistas, e muito particularmente na RDA.

Mas, decorridas quatro décadas, essa mesma Alemanha Ocidental — eis a grande verdade — não resolveu problemas vitais do povo alemão que vive na região ocidental. Mais do que isso. Hoje a República Federal da Alemanha — RFA- , como todo mundo capitalista, é um país atormentado por uma crise de vastas proporções, crise política, econômica, social e moral.

A realidade alemã ocidental hoje reflete a crise que avassala o sistema capitalista. Na RFA a situação social também vem se agravando. Progressivamente aumenta a pobreza. Os sindicatos da RFA estão prevendo que até 1990 cerca de 100 mil pessoas perderão seus empregos, atualmente, por força da automação. Afora, evidentemente, o desemprego resultante da crise do capitalismo que existe na RFA e em todo o ocidente capitalista, e que vai continuar.

Os meios de comunicação de massa do Ocidente já “decretaram” que nos países socialistas não há liberdade para os cidadãos e que, especialmente, inexiste liberdade de imprensa. Também “decretaram” que os direitos humanos não são respeitados no mundo socialista.

Daqui cinco anos (ou seja, ano que vem, parêntese meu), na RDA, não haverá mais desconforto habitacional — todas as famílias terão sua casa.


Acho que chega. Visto destes dias, quando centenas de milhares de alemães orientais choram, riem, cantam e bebem comemorando a derrubada — política, por enquanto — do muro, o livro de Antônio Pinheiro Machado Netto nos sabe a sinistra e merencória estupidez. Curiosamente, vereador algum da dita Administração Popular apresenta moção declarando persona non grata a Porto Alegre este entusiasta advogado de gulags. Este senhor, defensor dos restos podres do stalinismo, é Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e dela ainda não foi expulso.

Que um jovem fanatizado, sem leituras nem viagens, profira tais despautérios, é compreensível. Mas tal atenuante não beneficia um homem de idade cujos olhos tiveram a oportunidade de constatar, in loco, o exercício da tirania. Enfim, a paranóia parece ser genética. Um outro Pinheiro Machado, o Luiz Carlos, durante décadas, pretendeu submeter os genes às leis da dialética, defendendo as experiências fajutas de Lyssenko, pupilo de Stalin que por seu dogmatismo quase arrasou com a agricultura russa, tornando-a dependente, até hoje, de grãos do Ocidente. Luiz Carlos teve certa sorte: não teve editores que publicassem suas asneiras. O mesmo não aconteceu com Antônio.

Desde os anos 30, Moscou aprendeu como conquistar intelectuais no Ocidente: basta oferecer-lhes viagens e mordomias, com a nonchalance de quem joga milho às galinhas. A longa linhagem de intelectuais vendidos alberga desde pinheiros natos a expressões mais altas, tipo Kazantzakis, Aragon, Neruda, Brecht, Lukács, Sartre, Simone, Jorge Amado, Graciliano Ramos e vou ficando por aqui, que a lista seria infinda. O stalinismo, dogma já superado na Europa, ainda vige na América Latina.

O muro de Berlim já caiu. Quando cairá o muro mental de imbecilidade que ainda determina o pensamento de intelectualóides de esquerda?