¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, janeiro 24, 2011
 
PIERRE MICHEL PUBLICA
DICTIONNAIRE MIRBEAU



Octave Mirbeau é um dos mais singulares escritores do século XIX. Pouco conhecido no Brasil, dele tivemos notícias através de Buñuel, com seu filme de 1964, Diario de una Camarera, baseado na novela do escritor francês, Journal d’une Femme de Chambre. Meu contato com Mirbeau ocorreu em Lisboa, quando comprei em um antiquário da Baixa o perturbador O Jardim dos Suplícios. Em Ponche Verde, registrei esta leitura:

Escrito em estilo soberbo, de suas páginas exalava um odor lúgubre de flores podres. No fundo, o livro era uma ode à vida, mas isto só se revelava ao leitor após uma extensa apologia da morte e, para o espírito enfermo de Cristiano, apresentava-se como um desses medicamentos que eliminam não só a doença como também o paciente. Curiosamente, aquela viagem que acabava em um jardim oriental de torturas, começava em um navio.

“Chegar a qualquer sítio é morrer”, dizia um dos personagens, e Cristiano, lá no fundo, sem mesmo sequer ousar formular o pensamento, se deixava enamorar pela recíproca. Por outro lado, certas observações de Clara, o mais sinistro personagem feminino que jamais conhecera, acabavam lhe conferindo um mínimo de auto-estima, por si e pelos sentimentos que o minavam: “Quando se é alegre é porque não se ama... O amor é uma coisa grave, triste e profunda...” Clara, em meio a ratos podres, cães afogados, pedaços de bezerros e cavalos, passeando por um mercado chinês, “aspirava a podridão com avidez, como se fosse um perfume”.

Amor e morte, para aquele personagem que só na realidade mesmo poderia existir, já que dificilmente um cérebro humano, por enfermo que estivesse, o conceberia a partir do nada, amor e morte eram palavras sinônimas, e a podridão era a eterna ressurreição da vida. Outras opiniões de Clara, Cristiano as lia com uma piscadela cúmplice: era na luxúria que todas as faculdades cerebrais do homem se revelavam e se aguçavam. No entanto, desde que vira aquela argentina caída do céu, seu sexo cessara suas exigências. Espantava-se consigo mesmo ao descobrir que seu maior desejo era passear com ela pelas pontes, ouvi-la cantar, olhar peixinhos voadores.

Clara passeando excitada no jardim das torturas: “Na nossa sinistra Europa, que há tempo ignora o que é a beleza, tortura-se secretamente no fundo das prisões ou nas praças públicas, entre uma multidão de ébrios ignóbeis... Aqui é no meio das flores que se erguem os instrumentos de tortura e morte, os cadafalsos, as forcas e as cruzes”. O carrasco explicando a Clara seu ofício: “A arte, milady, consiste em saber matar segundo ritos de beleza que nós, chineses, somos os únicos a conhecer o segredo divino. Saber matar! Nada é mais raro, e tudo reside nisso. Saber matar! Significa trabalhar a carne humana como um escultor a argila ou um bocado de marfim... Obter o máximo, todas as capacidades de sofrimento que ela encerra no fundo de suas trevas e mistérios... É preciso ciência, variedade, elegância, imaginação... Enfim, gênio!”

E o verdugo-esteta concluía que o esnobismo ocidental, com seus couraçados, canhões de tiro rápido e explosivos tornavam a morte coletiva, administrativa, burocrática... “Enfim, todas as sujeiras do vosso progresso destroem, pouco a pouco, as nossas belas tradições do passado”. O suplício do rato: um rato faminto que era posto em um vaso com um pequeno orifício, fixado às nádegas de um condenado. Com um ferro em brasa assustava-se o rato para que buscasse uma saída e o animal acaba por encontrá-la, abrindo passagem com unhas e dentes.

Clara excitada ante o relato do verdugo. O suplício do sino: em meio a um jardim paradisíaco, ornado de pavões, faisões, galos da Malásia, um sino imenso sob o qual era atado um homem, até morrer com suas vibrações. Clara radiante. De onde Mirbeau arrancara, de que inferno ainda não concebido pela mente humana, de onde saíra aquele relato infame? — perguntava-se Cristiano. E os miasmas daquele poema negro lhe inundavam o espírito já asfixiado por uma rarefeita vontade de viver.


De Angers, França, recebo notícias do professor Pierre Michel, divulgador infatigável de Mirbeau, responsável pela edição dos Cahiers Mirbeau, cujo número 18 deve vir a público em março. Para quem quiser conhecer melhor o escritor francês, Pierre Michel nos brinda com o monumental Dictionnaire Mirbeau (1200 páginas), que deve ser publicado pela Age d’Homme, mas já tem acesso livre e gratuito em http://mirbeau.asso.fr/dictionnaire .

Merci, Michel, et à un de ces quatres!