¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, fevereiro 27, 2011
 
RELIGIÕES E CHOCOLATES


Ateu, sou um estudioso de religiões. Penso que jamais entenderemos o mundo se não entendermos as religiões. Os homens morrem e têm medo da morte. Apelam então a ilusões para combater a intempérie metafísica. Karen Armstrong é minha historiadora das religiões predileta. Conhece os textos religiosos como poucos. Muito aprendi com ela, tanto em Uma História de Deus como em A Bíblia. Comecei há pouco a leitura de Em Defesa de Deus. (Voltarei ao livro, quando chegar ao ponto final).

Já na introdução, a autora escreve: "não praticamos e, por isso, perdemos a aptidão para a religião". Como a natação, religião exigiria um aprendizado e uma prática. Ora, não vejo a coisa por esse lado. Assumir uma religião implica crer em um deus. Existe ou não existe? Se não existe, de nada adianta nadar. A proximidade da morte mexe com os mortais. É espantoso ver como pessoas inteligentes apelam a acrobacias intelectuais para partir numa boa. Minha concepção de religião coincide com a de Fernando Pessoa, em "A Tabacaria":

Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.


Sou um estudioso de chocolates, portanto. Penso que o estudo desta peculiar chocolataria - ou chocolatria, como quisermos - deve interessar a todo homem culto. Leio na Folha de São Paulo que 98 mil colégios no Brasil, públicos ou privados, oferecem esta disciplina, segundo censo da educação básica do MEC. "O que são as histórias da Bíblia? Fábulas, contos de fadas?", pergunta uma professora do 3º ano do ensino fundamental. "Não", respondem os alunos. "São reais!"

Aqui começa a enganação. Só crianças, em sua insciência, conseguem engolir potocas, tipo o mito da criação do universo em sete dias, do pecado, Eva e a maçã, dilúvio universal, Moisés dividindo as águas do mar, Josué parando o sol, sem que a terra desse sequer um solavanco. Segundo Armstrong, na maioria das culturas pré-modernas havia duas formas de pensar, falar e adquirir conhecimento. Os gregos as chamavam de mythos e logos. Ambas eram essenciais e não se considerava uma superior à outra; elas não conflitavam, mas se complementavam.

Segundo a teóloga, o mito nunca pretendia ser o relato preciso de um acontecimento histórico. Era algo que, de algum modo, aconteceu. Mas acontece o tempo todo. “No entanto, para o mito ser eficaz, não bastava que se acreditasse nele. O mito era, essencialmente, um plano de ação. Podia colocar o indivíduo na postura espiritual ou psicológica correta, porém cabia a ele dar o passo seguinte e fazer da ‘verdade’ do mito uma realidade em sua vida”.

Armstrong, ex-freira, recidivou. Considera o mythos tão importante quanto o logos. Ora, mythos é a mentira institucionalizada. Aqui começa o problema do ensino de religiões nas escolas. Segundo a Folha, o fundamento deste ensino está na Constituição, que determina que a disciplina deve ser oferecida no horário normal da rede pública, embora seja opcional aos estudantes. Escolas particulares não precisam oferecê-la, mas, se assim decidirem, podem obrigar os alunos a assistirem às aulas. No entanto, a lei proíbe que seja feita propaganda religiosa e as queixas devem ser feitas aos conselhos de educação.

Sempre defendi o ensino de história das religiões na escola. Mas atenção: de história das religiões e não de religião. Quem impedirá, no entanto, um papista de ensinar o mythos e não o logos? Para ensinar religião, geralmente são chamados os padres católicos e estes, é claro, puxam brasa para seus assados. O professor mais adequado para falar de religiões seria, a meu ver, um ateu. Que expusesse com isenção as diferentes doutrinas e deixasse aos alunos o direito de optar por uma delas. Ou por nenhuma.

Um rabino diria: Deus é um só e fim de papo. Já o papista ajuntaria: Deus são três em um só, Cristo é o filho mas também o pai, isso sem falar no Espírito Santo. Ao impor a Igreja de Roma o dogma da Trindade, Constantino criou um problema póstumo para a Maria. Mãe de deus ou mãe de Jesus? Mãe de Jesus, disseram alguns. Mas Jesus é Deus. Então mãe de Deus. Mas Deus, o velho Jeová, precede Maria. Como pode ser a filha mãe do pai? É o velho problema da Teotokos – mãe de Deus – que tanto perturbou os teólogos do medievo.

Mas divago. Falava do ensino religioso. Leio na Folha que em 1997, meses antes da visita do papa João Paulo II ao Brasil, o governo federal retirou da lei dispositivo que proibia o Estado de gastar dinheiro público com o ensino religioso. Em 2008, nova polêmica surgiu quando o Brasil assinou com o Vaticano acordo que previa que "o ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental".

A controvérsia teria sido a menção explícita ao catolicismo, vista por alguns como privilégio a uma única religião. Em verdade, quem domina o ensino religioso no Brasil é a Igreja de Roma. Que não vai admitir de bom grado que se ensine nas escolas outros mitos que não os seus. Sem falar que, fosse esta idéia aceita, o cerebrinho dos adolescentes viraria geléia. Imagine um aluno tendo de ouvir pregações de católicos, evangélicos, protestantes, espíritas ou umbandistas.

Ou talvez não. A existência de tantos deuses é a prova cabal de que nenhum existe.