¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, abril 06, 2011
 
A CHISPA DA FERRADURA *


Uma declaração da ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Política da Promoção da Igualdade Racial, em uma entrevista à BBC Brasil, está merecendo o repúdio da imprensa, das autoridades em geral e até mesmo de líderes negros. Disse a ministra:

"Não é racismo quando um negro se insurge contra um branco. Racismo é quando uma maioria econômica, política ou numérica coíbe ou veta direitos de outros. A reação de um negro de não querer conviver com um branco, ou não gostar de um branco, eu acho uma reação natural, embora eu não esteja incitando isso. Não acho que seja uma coisa boa. Mas é natural que aconteça, porque quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou".

A ministra disse bobagens, é verdade. Mas nem tudo que a ministra disse é bobagem. Vamos por partes.

Não é racismo quando um negro se insurge contra um branco.

Pode ser e pode não ser. Se o negro se insurge contra o branco só porque o branco é branco, estamos diante de um caso óbvio de racismo. Se se insurge contra o branco porque está sendo, por exemplo, explorado pelo branco em sua força de trabalho, o problema não é mais de raça, mas de justiça. Sem falar que o verbo insurgir é vago.

Na primeira acepção do Aurélio, temos sublevar, revolucionar, revoltar, rebelar, insubordinar, insurrecionar. A ministra foi infeliz na escolha desta palavra, que foi posta na moda pelos brancos de boa cepa americana. Insurgency e insurgent foram os eufemismos que a imprensa americana encontrou para eludir palavrinhas que desde a guerra do Vietnã chocam os americanos, como guerrilha e guerrilheiro. A imprensa brasileira seguiu como dócil rebanho a orientação dos coleguinhas ianques.

A palavra tem um nítido sentido de revolta contra um poder. Se a ministra se referia ao negro brasileiro, a palavra não tem sentido algum, pois não se pode falar de um poder branco no Brasil, tanto que ela é ministra.

Racismo é quando uma maioria econômica, política ou numérica coíbe ou veta direitos de outros.

Pelo jeito, a ministra sentiu-se na obrigação de dizer qualquer coisa e proferiu a primeira bobagem que lhe passou pela cabeça. O mundo está cheio de maiorias brancas explorando brancos, maiorias negras explorando negros e é claro que nisto não há nenhum viés racial.

A reação de um negro de não querer conviver com um branco, ou não gostar de um branco, eu acho uma reação natural.

Esta parece ter sido a frase que mais repulsa causou. E aqui vou defender a ministra. Ninguém é obrigado a gostar de alguém. Este pensamento é o pior legado do cristianismo, o famigerado amor ao próximo. Ao instituir como mandamento o amor ao próximo, os cristãos abolem o nobre sentimento da amizade, que é uma escolha eletiva. Nós escolhemos para amigos as pessoas de quem gostamos, e não necessariamente o vizinho de porta ou colega de trabalho. Ordenar a alguém que ame seu próximo é mandamento de bíblica brutalidade.

Inversamente, sempre defendi a tese de que um branco não tem obrigação alguma de gostar de negros. Podemos gostar ou não gostar, e nisto não vai nenhum racismo. O racismo está em considerar um ser inferior em função de sua cor ou raça, em negar-lhe direitos em função de cor ou raça. Não gosto nem desgosto de alguém pela cor da pele. Me criei convivendo com negros, tive bons amigos negros e também conheci negros abomináveis. Entre estes situo aqueles que quando um garçom demora cinco minutos, logo jogam na mesa a moeda racial: "tá demorando porque eu sou negro". Deste tipo de negro procuro manter distância.

Acho, como a ministra, perfeitamente natural que um negro não goste de brancos ou com eles não queira conviver. (E vice-versa). Foi a chispa da ferradura quando bate na calçada, como dizia Agripino Grieco. Pois na frase seguinte a ministra volta a proferir bobagens.

Mas é natural que aconteça, porque quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou.

Supõe-se que a ministra fale do Brasil. Ora, mesmo metaforicamente, a frase é totalmente vazia de sentido. Vivi em quatro Estados no sul do país, justo os Estados de predominância branca, e nunca vi em minhas seis décadas de vida nenhum sendo maltratado. Nem no campo, onde me criei, nem na cidade, onde me eduquei. Em quase meio século de bares, nunca vi um negro deixar de ser servido, ou ser mal servido, por sua cor.

Não há negro algum sendo açoitado a vida inteira neste país, ministra. A ministra está contrabandeando para o Brasil o ódio racial ainda existente nos Estados Unidos, aquele país que não aceita a miscigenização. Lá não existe o conceito de mulato. Uma gota de sangue negro dezesseis gerações atrás faz do mais branco dos americanos irremediavelmente um negro. O imenso contingente de mulatos deste país, que quase alcança o número de brancos, é o atestado definitivo de que aqui não se açoita negros a vida inteira.

Não fica bem para uma ministra proferir tais bobagens.

(*)28 março 2007