¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, abril 30, 2011
 
SOBRE ERNESTO SÁBATO (I)

(entrevista concedida à professora Inês Skrepetz)



Inês Skrepetz - Você acha que Ernesto Sábato é um intelectual humanista? Por quê?

Janer Cristaldo - Todo intelectual sempre se pretende um humanista. Tanto os marxistas cuja filosofia massacrou cem milhões de pessoas em busca do homem novo e da sociedade justa, quanto os nazistas que mataram outros tantos em nome da pureza racial. Sábato começou sua vida como militante comunista. Certamente se considerava um humanista naqueles dias. E certamente continuou se considerando humanista quando percebeu seu equívoco e passou a criticar o comunismo.

IS - O que você entende por humanismo no século XXI?

JC - Humanismo é uma palavra-ônibus, que transporta um monte de significados. Tentando cercar a palavrinha, peço auxílio a Ferrater Mora. Resumindo: a palavra foi usada a primeira vez em 1808, em alemão (Humanismus), pelo educador bávaro F. J. Niethammer, que entendia o conceito como a tendência a destacar a importância do estudo das línguas e dos autores clássicos. A palavrinha migrou para a Itália (umanista) para designar os professores das chamadas “humanidades”. Humanista era um homem ligado às artes liberais, ou seja, história, poesia, retórica, gramática e filosofia moral.

Na época atual, segundo Mora, fala-se de humanismo para designar também certas tendências filosóficas, especialmente aquelas nas quais se põe em relevo algum “ideal humano”. Como os ideais humanos são muitos, proliferaram os humanismos. Teríamos assim um “humanismo integral” (Maritain), um humanismo liberal, um humanismo existencialista, um humanismo científico e várias outras derivações. Algumas tendências humanistas priorizam a noção de “persona”, em oposição a idéia de indivíduo. Outras se caracterizam pela noção de sociedade aberta, em oposição à sociedade fechada. Outras, por destacar o caráter social do ser humano. Outras, por colocar em destaque que o homem não se reduz a uma função determinada, senão que é uma totalidade.

Afirmar que Sábato é um intelectual humanista, não é incorreto. Mas não quer dizer grande coisa.

IS - Na obra A Resistência, escrita em 2000 (p.100), Sábato faz uma reflexão crítica ao humanismo. Estaria ele negando ou buscando formular um novo conceito de humanismo?

JC - Deste caso específico não poderia falar. É o único livro dele que não li. De qualquer forma, como todo escritor, mais dia menos dia teria de abordar o assunto. Em entrevista que me concedeu nos anos 70, Sábato dizia que Marx foi um dos que mais lutou com seus livros contra a escravidão no mundo capitalista, especialmente na Inglaterra vitoriana com a qual conviveu, e tem partes filosoficamente de valor. “Também devemos reconhecer, frente ao homem abstrato de Hegel, alheio à terra e ao sangue, a frase de Marx : ‘O homem não é um ser abstrato, fora do mundo: é o mundo dos homens, do Estado, da sociedade’. Sua consciência é uma consciência social, enunciando assim um novo humanismo frente às enteléquias iluministas e racionalistas tipo Voltaire”.

Se Sábato rompeu com o comunismo, sempre lhe resta uma certa nostalgia do marxismo. Em Três Aproximações à Literatura de nosso Tempo, escreve: “Marx enuncia os princípios de um novo humanismo: o homem pode conquistar sua condição de "homem total" levantando-se contra a sociedade mercantil que o utiliza. Ele, como Camus, descendentes de Pascal, exerceram este mesmo humanismo áspero, essa mesma repugnância pelo engano e o auto-engano, para auscultar o homem conturbado pela grande crise de nosso tempo”.


Em Homens e Engrenagens, repele o antigo conceito de humanismo: “No momento em que o humanismo se extasia com a antigüidade, no momento em que faz de seu culto um jogo cortesão e refinado, torna-se conservador e reacionário: técnicos como Leonardo, os homens que melhor representam o espírito da modernidade, verão como charlatães esses senhores que passavam o dia discutindo na Academia, esses pedantes que haviam voltado as costas à linguagem popular para entregar-se à vã ressurreição do latim, esses presunçosos que haviam deixado de chamar-se Fortiguerra ou Wolfgang Schenk para converter-se, grandiosamente, em Carteromachus e Lupambulus Ganimedes. Desta forma, o humanismo passa do tema da liberdade ao tema do dogma, ao dogma da antigüidade. E da revolução passou à reação”.

IS - Qual a relação de Sábato com o existencialismo?

JC - Diria que nenhuma. O existencialismo é uma corrente filosófica e Sábato, embora discuta filosofia, nunca se pretendeu filósofo nem aderiu a qualquer doutrina. Mas há muito em Sábato, particularmente em Informe sobre cegos, de um movimento artístico do início do século, o surrealismo, influência de seu convívio com Oscar Domínguez e André Breton em Paris. Em Homens e Engrenagens, confessa: "Ali, em 1938, soube que minha fugaz passagem pela ciência havia terminado. Embora o doutor Jekill ainda medisse a radiatividade do actínio durante o dia, Hyde vagava noturno e solitário pelas ruas de Paris, ou começava a escrever as páginas de um romance catártico ou se revolcava na pura irracionalidade, promovendo escândalos com os pintores surrealistas. Como compreendi então o valor moral do surrealismo, sua força destrutiva contra os mitos de uma civilização finda, seu fogo purificador, mesmo apesar de todos os farsantes que se aproveitavam de seu nome!"

Mas, escritor atento a seu tempo, também se preocupou com o existencialismo. É ainda em Homens e Engrenagens que escreve: “Tanto que naquelas cidades nórdicas, formadas em torno das fortalezas feudais, o surgimento da nova civilização iria se realizar com atributos mais bárbaros e modernos, em cidades essencialmente mercantis, com as mais típicas características do capitalismo moderno. Mas ao mesmo tempo, paradoxalmente em aparência, seriam o berço das reações mais violentas contra a nova civilização: o romantismo e o existencialismo”.

Volta ao assunto em Três Aproximações: “O existencialismo, e em geral o romantismo, é a revolta dos elementos femininos da humanidade”.

IS - Para Sábato, seria o existencialismo um humanismo, como defendido na obra de Sartre?

JC - Estou hoje distante da obra de Sábato, em todo caso não lembro de ter lido nenhuma declaração sua neste sentido. Verdade que em "Sartre contra Sartre ou a missão transcendente do romance", um dos ensaios das Três Aproximações, o ensaísta argentino vai dedicar seu tempo a esmiuçar o pensamento sartriano. Mas sua preocupação não é o humanismo, e sim o fato de que, em abril de 1964 Sartre renegou sua obra de ficção, afirmando que um romance como A Náusea não tem sentido algum quando em alguma parte do mundo há uma criança morrendo de fome.

Sábato indigna-se com tal postura: “É quase inimaginável que um pensador do porte de Sartre tenha chegado a pronunciar por convicção teórica tal precariedade. E como em alguém de sua honradez intelectual é impossível a demagogia, não resta senão a hipótese sobre a oculta (e para ele culposa) antinomia que existe entre sua visão filosófica e sua militância política. Senão, como explicar de outro modo que um intelecto como o seu não observe que esta tese conduziria não só ao repúdio de um romance metafísico como também à extirpação da arte, da ciência pura e da filosofia em sua totalidade? De que modo pode salvar uma criança, nem tanto a música de Bach mas a teoria de Einstein ou a fenomenologia de Husserl? A aplicação conseqüente do critério sartriano nos obrigaria a renunciar às mais altas atividades do espírito para combater apenas por ideais políticos”.


Quanto ao existencialismo sartriano, Sábato é cheio de dedos. Escreve em Heterodoxia:

“O homem só tem fé no racional e abstrato, e por isso se refugia nos grandes sistemas científicos ou filosóficos; de maneira que quando este Sistema vem abaixo - como mais cedo ou mais tarde acontece - sente-se perdido, cético e suicida. A mulher confia no irracional, no mágico, e por isso dificilmente perde a fé, porque o mundo jamais pode revelar-se mais absurdo do que ela o intuiu pela primeira vez. o credo quia absurdum é feminino, como toda a filosofia existencialista (embora seja feita por homens; por homens, bem entendido, fortemente propensos à feminilidade). Racionalizar o universo e Deus é empresa tipicamente masculina, loucura própria de homens. Por esta razão, não creio no existencialismo de Sartre. Sua chave mais profunda deve ser buscada em seu primeiro romance, em sua náusea ante o contingente e gelatinoso, em sua propensão viril pelo nítido, matemático, limpo e racional. Sua obra filosófica é o desenvolvimento conceitual desta obsessão subconsciente. Este desenvolvimento leva fatalmente a uma filosofia racionalista e platônica”.

Ainda no mesmo livro: “Como a criança teme a escuridão, o homem teme o Caos Universal. (...) Uma vez lá, no refúgio de alta montanha, acabamos por almejar a vida, não obstante ou mesmo por sua sujidade e sua desordem, e assim voltamos do pensamento puro à vida e ao romance. O existencialismo é uma volta ao perigo e não se deve estranhar que suas palavras mais usuais sejam vertigem e angústia”.

Tampouco acredita na sistematização do existencialismo: “Jaspers precedeu Heidegger, Marcel precedeu Sartre. Mas não se acredita senão no sistemático. Por outro lado, sistematizar o existencialismo é tão espantoso como codificar o surrealismo, da maneira como Breton o fez, inaugurando essa espécie de Academia dos Bons Costumes no Inferno”.