¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, maio 01, 2011
 
CHARLAS COM ERNESTO SÁBATO (I)


Janer Cristaldo – Você, que há mais de meio século vem lutando contra as tiranias dos regimes comunistas, como se sente ao final do milênio?
Ernesto Sábato – Não só lutei contra as tiranias comunistas, mas contra toda forma de tirania. Não há ditaduras más e outras benéficas: todas são igualmente abomináveis. O que me desagrada é quando são feitas em nome de grandes ideais, como foi o caso, precisamente, da stalinista. Pelo mesmo motivo, me repugnam as igrejas estabelecidas que, como no caso da religião cristã, com um Deus onisciente e infinitamente bondoso, torturaram horrendamente ou perseguiram até a morte seitas bondosas.
JC – Estudando sua obra, sempre o vi como um espírito religioso, particularmente pelo fato de ter militado, em sua adolescência, com os anarquistas e logo depois com os comunistas.
ES – Sim, é claro que a maior parte dos adolescentes que se aproximaram destes movimentos eram espíritos religiosos, ou pelo menos para-religiosos. Lutávamos contra a injustiça social, não suportávamos ver crianças morrendo de fome.
JC – Você acredita em Deus?
ES – Sim e não, conforme o momento e as circunstâncias. Pois, como acabo de dizer-lhe, é duro compatibilizar um Deus infinitamente bondoso com a venda por 100 ou 200 dólares de meninos e meninas para a prostituição. Essa notícia saiu aqui, falando de uma região do Brasil. Mas, como diz Santo Agostinho, em suas Confissões, Deus é inacessível à razão, e o que estamos utilizando aqui são meras razões. As grandes verdades – e aquela da qual estamos falando é a grande Verdade – só podem ser alcançadas mediante a intuição mística ou poética. Falo de poesia no sentido mais primigênio e profundo da palavra, não estou falando de versinhos. Só a poesia – que inclui não apenas poemas profundos, ficções memoráveis, pinturas e obras musicais eternas – é capaz de dar uma resposta. Por outro lado, e falo a propósito de sua pergunta, um espírito religioso não é necessariamente alguém que crê firmemente na existência de Deus, mas também – e bastante amiúde – alguém que vive angustiado com este problema. Incluo nestes os que blasfemam ou dizem atrocidades, que formam uma legião majoritária e que, de modo paradoxal, acreditam em Deus. Pois contra quem lançariam então estas blasfêmias? O ateu deve ser ateu e ponto final. Isso eu o disse em meu primeiro livro, faz meio século, Uno y el universo, que você traduziu no Brasil. Pois se se trata de um ateu enérgico, é preciso se pôr em dúvida seu ateísmo. Tampouco se pode acreditar que os anticlericais – ou boa parte deles – sejam ateus: são às vezes autênticos espíritos religiosos que sentem repugnância pela igreja estabelecida, pelo stablishment. Há um anticlerical bastante conhecido, chamado Jesus, que se rodeava de pescadores analfabetos e prostitutas, que pregava junto aos pobres, que contou aquela parábola sobre o camelo e o buraco de uma agulha, que detestava os fariseus e os escribas. Aquele ser também deve ter duvidado, como demonstra sua última e tremenda frase, quando foi crucificado. Tivesse vivido na Argentina, na última ditadura militar, que teria feito? É evidente, teria pregado para as villas-miseria, que no Brasil são as favelas. Que teria acontecido com ele? O mesmo que ocorreu com muitos de seus discípulos, que foram seqüestrados por comandos militares, logo violentados e torturados selvagemente, e finalmente assassinados. Teria sofrido, efetivamente, esta via crucis e, o que é mais horrendo, em nome dos valores "ocidentais e cristãos", por torturadores que eram assistidos e absolvidos por sacerdotes católicos. E assim teria morrido em Buenos Aires, como morreu tantas vezes em circunstâncias semelhantes em todas as partes do mundo. Pois a maldade é universal e tem a duração da espécie humana. É a frase do Eclesiastes, quando diz que nada há de novo sob o sol. Refere-se, é claro, ao coração do homem, que é o mesmo desde sempre. Esse coração que é o território no qual lutam, pela alma do homem, Deus e o Demônio. Frases, palavras do heresiarca Fedor Dostoiesvski.
JC – O que pensa a igreja argentina a seu respeito?
ES – Alguns gostam de mim e me respeitam, a maioria me acusa de "canhoto", de terrorista, de subversivo, de materialista dialético (os mais filosóficos), de bolche e epítetos semelhantes. Alguns destes são corretos. Outros, sofismas grosseiros.
JC – Quais seriam os justos?
ES – Sou, efetivamente, um subversivo. E um "canhoto", porque propugno a justiça social, a liberação dos povos oprimidos e luto contra toda forma de racismo. Quanto ao epíteto de "materialista dialético", você, que traduziu Hombres y Engranajes, meus outros ensaios e meus romances, sabe que é um enorme, grotesco e perverso sofisma. Ganhei, ao longo de meio século, uma bela fama: os reacionários me qualificam como comunista e os comunistas me qualificam como reacionário, porque fui inimigo do criminoso regime soviético e por não participar de seu ateísmo de bairro. Devo esclarecer, no entanto, algo que para mim é importante: sempre respeitei os comunistas que, por sua candidez ou sólida fé acreditaram no regime soviético, os que sofreram prisão e torturas, os que lutaram com boa fé por seus ideais. Por isso –fato que enalteci em dois de meus livros– admiro e continuo admirando Che Guevara, que foi acima de tudo e de seu marxismo, um grande idealista, um personagem quixotesco que, como diria Rilke, teve sua morte pessoal na selva boliviana, após ter abandonado a burocracia cubana. Um herói, e sempre temos de nos erguermos ante um herói que morre por ideais. Não até sua altura, é claro, mas também quis e continuo querendo bem seres como Gerardo Pisarello e Arturo Sánchez Riva, a quem dediquei um livro, e me doía saber que ele lia as coisas que escrevi sobre o horror do stalinismo. Eram pessoas de fé, que acreditavam apesar de tudo. Houve muitos que morreram sob tortura por defender essas idéias nas quais acreditaram. Merecem admiração e respeito.
JC – A queda do muro de Berlim e o desmantelamento da União Soviética, você os previu ou os considerava como fatos impossíveis?
ES – Foram sacrificadas em torno de 20 milhões de pessoas, e a burocracia corrupta e a indigência do povo faziam possível este final. Mas a história não é previsível, já que não obedece a leis racionais, como precisamente pensavam Marx e Engels. A história é sempre novidade, dizia o filósofo norte-americano William James, irmão de Henry, o romancista. Frase brilhante mas que não gozava da admiração destes pensadores que acreditavam nas "leis" da história, como se fossem leis científicas. Marx e Engels não qualificaram seu socialismo como "científico"? Era tão pouco científico que nenhuma das predições de Marx se cumpriram: a revolução social não só não explodiu no país mais desenvolvido do mundo, como ocorreu em um país atrasado. Nem os proletários de todo o mundo se uniram para lutar contra os burgueses do mundo inteiro, mas nas duas grandes guerras mundiais os operários, junto com os burgueses lutaram contra os operários e burgueses unidos do outro lado. Nem os países comunistas não lutariam jamais contra outros países comunistas (lembremos o Camboja), isso para não falar do ódio dos chineses contra a União Soviética. Nem o espírito religioso do povo eslavo desapareceu por obra do ensino anti-religioso.