¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, maio 01, 2011
 
CHARLAS COM ERNESTO SÁBATO (II)


JC – Pode-se encontrar partes resgatáveis em Marx e Engels?
ES – Sim, penso que Marx foi um dos que mais lutou com seus livros contra a escravidão no mundo capitalista, especialmente na Inglaterra vitoriana com a qual conviveu, e tem partes filosoficamente de valor. Para seus epígonos baratos e, no caso grotesco de Stalin, todas as atividades do espírito foram reduzidas às forças econômicas. Em sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, afirma que não é a história que faz o homem, mas sim o homem real e vivo que faz a história. Mas a escolástica stalinista tergiversou e barateou suas idéias. Homens como Labriola, na Itália, foram sufocados pela escolástica oficial. Talvez como resultado da tradição hegeliana que na Itália se manteve por obra de Croce – filósofo idealista – pode surgir um espírito tão admirável como Gramsci, que durante seus seis anos de cárcere escreveu páginas que resplandecem em meio à baixeza filosófica do stalinismo. Lutou contra a obra de Plekanov, que tanto foi predicada em meus anos de estudante, quando defendia que a arte era um "reflexo" da sociedade e que as condições econômicas "explicavam" os sentimentos, as idéias e a arte. Bastaria lembrar que Marx recitava de memória Shakespeare e os líricos ingleses e alemães, muitos deles "reacionários", e ria de L'Insurgé, aquele romance "engajado" de um militante da Comuna de Paris. E o que não teria dito da famosa arte "proletária" incubada pelo stalinismo! Também devemos reconhecer, frente ao homem abstrato de Hegel, alheio à terra e ao sangue, a frase de Marx : "O homem não é um ser abstrato, fora do mundo: é o mundo dos homens, do Estado, da sociedade". Sua consciência é uma consciência social, enunciando assim um novo humanismo frente às enteléquias iluministas e racionalistas tipo Voltaire. Nisto, há muito parentesco com o que fariam os existencialistas de forma mais acabada. Mas ele compartilhava com os iluministas o mito da Ciência e da Luz contra as potências obscuras. Essas potências obscuras que constituíam o mais profundo e concreto da condição humana: a alma e suas paixões, o inconsciente e suas verdades, a própria fonte dessa arte que tanto admirava. Por alguma razão ele e Engels chamavam seu socialismo de "científico", frente aos utópicos anarquistas, que são os que finalmente tiveram razão. Demoliu implacavelmente Proudhon, mas agora compreendemos que aquele socialismo não teria incorrido na massificação soviética, típica tanto do capitalismo de massa como do socialismo de massa, ambos herdeiros da ciência e da técnica, que conduziram a esta espantosa catástrofe de nosso tempo.
JC – Em suma, voltar ao anarquismo?
ES – Sem dúvida, senão seremos destruídos minuciosamente pelo desastre talvez irreversível da ciência e de sua filha dileta, a técnica, com suas megalópoles, com a destruição geral da natureza e do próprio homem, massificado, coisificado, que não tem outra saída senão a droga ou o nihilismo destrutivo. Mas isto nos leva muito longe e não pode ser desenvolvido em uma simples entrevista. Em Hombres y Engranajes, que escrevi em 1951, explico em profundidade esta crise colossal. Me encheram de insultos e fiquei dez anos sem publicar uma única linha, até 1961, quando me decidi a editar Sobre Héroes y Tumbas. Agora, tudo o que disse naquele livro está à vista, todo o desastre do famoso progresso.
JC – Quais seriam as conseqüências desta degringolada para os futuros projetos dos escritores?
ES – Depende de que espécie de escritor você fala. Para os profundos, será sempre a mesma coisa, os temas transcendentes que constituem a condição humana, que são sempre os mesmos. Para os escritores de ocasião, para os que se limitam ao anedotário político, não sei, suponho que continuarão escrevendo as mesmas superficialidades.
JC – Você parou de escrever ou vai nos brindar com alguma outra criação?
ES – Você sabe que em 1979 me detectaram uma grave doença nos olhos: não câncer, mas algo irremediável, com o derrame do humor vítreo, com o que as retinas ficam sem proteção, e as lesões decorrentes que naquela época eram muito grandes. O especialista, um grande amigo meu, me proibiu a leitura e a escritura, salvo em quantidades mínimas e empregando minha memória digital.
JC – Está cumprindo esse pedido médico?
ES – Não foi pedido, foi uma ordem terminante, amistosa mas terminante. Claro, como não iria cumpri-la? Para cúmulo, este meu horror sagrado à cegueira...
JC – Como se seus livros, seus romances, tivessem um caráter premonitório...
ES – Sim.
JC – Você agora começou a pintar, precisamente porque está mal de vista?
ES – Claro, vale a piada. Mas a realidade é que o tamanho de um quadro me permite o que não me permite a letra. Quando o oculista me disse, com um rosto muito grave, o que me acontecia e observou que talvez eu não tivesse ficado angustiado, me falou de sua perplexidade. É muito simples, respondi, toda minha vida tive a nostalgia de minha paixão, primeiro pela pintura, desde que era pequeno e depois adolescente. Foi a minha primeira e talvez mais forte paixão. Nesse mesmo instante me senti liberado, porque que cada vez que fazia alguma coisa de pintura, sentia uma espécie de culpa, porque muitos me diziam que devia continuar escrevendo. Na realidade, ao concluir Abaddón, el Exterminador, em 1974, senti que havia dito tudo o que tinha de dizer, a ponto de minha tumba aparecer no romance. Enfim, continuei escrevendo alguns pequenos ensaios. Mas as grandes verdades, pelo menos as que eu não consigo alcançar, já estavam ditas. Essas grandes verdades existenciais, as quais não só escrevemos conscientemente mas, e principalmente, com os ditados que vêm do mais profundo de nosso ser, do inconsciente. A propósito, quero acrescentar algo que considero fundamental: a pintura permite uma transmissão mais direta destas visões inconscientes. Por isso é mais catártica, mais liberadora.
JC – O mesmo não diriam um Proust ou Joyce. Explique melhor a coisa.
ES – O inconsciente se expressa sempre por imagens, como nos sonhos, que são como cinema mudo, com raras exceções. A pintura tem esta vantagem sobre a literatura, embora por outro lado tenha desvantagens. Tanto em um caso como no outro, o fundamental, as grandes verdades, vêm do inconsciente. De um sonho pode-se dizer qualquer coisa, menos que seja falso. O processo da criação, tal como pelo menos eu pude verificar pessoalmente, é assim: em momentos excepcionais, nessa região penumbrosa que fica entre o sono e o pleno despertar, às vezes se consegue entrever algo, o que poderíamos e talvez deveríamos denominar de "objeto poético", quase inexpressável, ambíguo, contraditório, mas tão verdadeiro que nos sacode, nos angustia ou nos fascina. O escritor tem de expressar esse objeto por intermédio da palavra, mas a palavra sempre é conceitual: "árvore" não é a imagem de uma árvore, já que serve tanto para uma palmeira como para um limoeiro. É uma convenção abstrata, e por isso em cada língua se diz de maneira diferente: árvore, baum, tree... Um dos grandes problemas que o escritor tem de resolver é o de expressar, mediante conceitos puros, algo que não é conceitual, mas visual, e além disso ambíguo, polivalente. Penso em todas as interpretações que se podem fazer e foram feitas dos sonhos de José, através dos séculos. Essa é a diferença entre poesia e prosa, não a que se pensa normalmente: a prosa, em sentido estrito, é um teorema, ou uma lei científica, ou um prospecto que acompanha um objeto doméstico eletrônico, em que se dá instruções precisas e unívocas sobre cada botão. A poesia, no sentido grande e clássico, é, ao contrário, ambígua e multívoca, seja um poema, uma tragédia ou um grande romance. Tem muitas leituras, como se diz agora no jargão, é suscetível de diferentes interpretações, que mudam inclusive em nós mesmos, como leitores, à medida que passam os anos. Esta linguagem poética, que na simples prosa emprega idéias abstratas, na pintura se dá diretamente através de uma imagem.
JC – Você tem feito exposições?
ES – Sim, mas só no estrangeiro. a primeira no centro Pompidou, há pouco uma em Madri e outra novamente em Paris.
JC – Como influiu em seu ânimo, e mesmo em sua saúde, essa nova condição?
ES – Maravilhosamente. A pintura é mais liberadora, por isso talvez existam pintores mais longevos que escritores. Marc Chagall não acabava de morrer nunca... Há, além disso, a vantagem de ser algo mais intuitivo e manual. Até o cheiro de terebentina me subjuga. Cada vez que entrava no ateliê de pintura de um amigo meu sentia esse cheiro e um sentimento de frustração. Alguma vez escrevi que lutamos contra o destino e o destino por fim tem razão. Eu costumava dizer a Matilde: morrerei com uma enorme nostalgia da pintura. A semicegueira me permitiu a pintura.
JC – Em que escola você se situa?
ES – Você, que leu e traduziu meus romances, que acha?
JC – Uma pintura trágica e expressionista?
ES – Acertou. Ultimamente derivou para uma obra totalmente sobrenaturalista. Há quadros tão terríveis que não poderia colocá-los em minha casa, como diria um marxista eterno, o Groucho.