¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, maio 29, 2011
 
E LÁ PRAS BANDAS DO SUL...


E lá pras bandas do Sul,
Pra cá do Prata um pouquito,
Deus engastou Dom Pedrito,
Essa jóia tão rara...



Feliz de quem tem uma província no coração, disse alguém, não lembro quem. Acho que foi o Mário Quintana. Eu tenho uma e se chama Dom Pedrito. Não é minha cidade natal, nasci no distrito de Upamaruty, zona rural de Livramento. Mas foi a primeira que conheci. Quando tinha dez anos, peguei minha bicicleta e fui estudar no povoado, como se diz por lá. Fui com o coração aos pulos, não sabia o que era cidade. Imaginava, certamente de ouvir contos de fada, algo dourado e brilhante, cheio de castelos. Pega a estrada real e vai em frente, disse meu pai. Foi o que fiz. Já na várzea do Santa Maria, vi ao longe a silhueta do casario.

Decepção total. A cidade nada tinha de dourado. Era cinza e me pareceu um tanto sem graça. Mas era minha nova geografia e a ela tinha de adaptar-me. Os pátios das casas me chocaram. Lá no campo, meu espaço vital terminava no horizonte, onde começava o Uruguai. Em Dom Pedrito, terminava dez metros adiante, onde começava outra casa. Mais adiante, quando fui morar em apartamento, tive outra surpresa. A casa terminava na janela.

Vivi cinco anos em Dom Pedrito. Naqueles dias pré-televisivos, em que as pessoas punham as cadeiras na calçada, na frente das casas, e ficavam tomando mate, contando causos e mexericando sobre a vida alheia. O grande lazer da cidade era o footing em torno à praça General Osório. No início da noite, os pedritenses chegavam à praça e começavam a circular em torno dela, em duas marés em sentido oposto uma à outra. Este sentido oposto é importante. Fossem todos em uma só direção, não haveria trocas de olhares, namoros, talvez nem mesmo casamentos.

Outro momento de lazer, pelo menos no verão, era a praia do Chiquilim, pomposamente chamada de Chiquilin’s Beach. Ficava justo no passo do Santa Maria por onde don Pedro de Ensuategui, basco que dera com os costados naquelas plagas, passava seus contrabandos. Daí o nome da cidade.

O rio tinha duas praias, uma à esquerda e outra à direita do passo, quem saía da cidade. Na primeira, iam às famílias. Na segunda, as prostitutas. Certo dia, peguei uma canoa e mais duas ou três moças da praia da direita. Remei à montante e cruzei, glorioso, a praia das moças de bem. Elas jamais esqueceram aquele gesto. Anos mais tarde, encontrei uma delas em um bar em Porto Alegre. Ela reconheceu-me e convidou-me a seu apartamento. “Como te esquecer? Sempre foste um revoltado” – me disse. Chorou boa parte da noite relembrando aquele passado perdido. Eu também.

Em Dom Pedrito começaram meus primeiros embates da vida. Lá descobri o poder das palavras. Comecei escrevendo num jornalzinho estudantil, o Pirilampo. Certo dia, escrevemos um artigo onde defendíamos a tese de que, para fazer a reforma agrária, não era necessário mexer na Constituição, já que ela estava prevista na Carta Magna.

Nossa! Escândalo em Dom Pedrito. O Ponche Verde, o vibrante hebdomadário local – se me é permissível a expressão – nos tachou de comunistas. Exigimos direito de resposta, que nos foi concedido. Mas nosso artigo foi prudentemente cercado por outros três, um deles de autoria do Dr. Márcio Bazan, latinista emérito, daqueles que escrevia mais em latim do que em português. Um outro era de João Bosco Dihl, nosso professor de português. Exigimos tréplica. E a salpicamos com alguns data venias, mais uns quousque tandems e latinórios outros. Ninguém entendia na cidade aquela erudição de adolescentes. Só a entendeu o padre Chico, sacerdote alemão professor de matemática.

- Eu sei. Focês lerram as páchinas finais do Aurrélio.

Acertou na mosca. O Aurélio daqueles dias tinha várias citações latinas ao final do tomo. Já o professor de português levou uma paulada severa. Em seu artigo, ousou empregar um pronome oblíquo no início da frase. Até hoje não esqueço nossa resposta ao final do artigo:

- Admoestamos ao ínclito mestre da língua vernácula que as mais elementares regras gramaticológicas coarctam o emprego do pronome oblíquo nos proêmios de uma frase.

Eram dias em que nossas mães queimaram nossas bibliotecas incipientes. Não por censura, mas por temor aos militares. Em verdade, não havia razão para tanto. Mas mãe é mãe. Não gostavam de nos ver reunidos discutindo filosofia. Íamos então para a praça General Osório. Mas as noites de Dom Pedrito, quando fustigadas pelo minuano, são gélidas. O recurso era o bar do Santinho, onde continuávamos discutindo nossas concepções de homem e de mundo. Mas o Santinho fechava lá pelas dez. O último recurso era o bordel.

Visitávamos as moças para continuar discutindo filosofia. Por um lado, tínhamos medo de mulher, constituam um mistério que a gente ainda não conhecia. Por outro, mal tínhamos dinheiro para uma cervejinha. Lembro que uma delas era uma defensora efusiva da reforma agrária. Mas nós, como diria Sartre, éramos uma paixão inútil. Com o passar dos dias, colocaram uma atalaia na janela. Mal surgíamos na esquina, fechavam a casa. “Lá vêm os filósofos, dali não sai grana alguma”.