¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, maio 06, 2011
 
E SE O HOMOAFETIVO
QUISER DESOMOAFETIVAR-SE
DE SEU HOMOAFETO?



Quem escreve mal não pode ser bom caráter - disse alguém, já não lembro quem. O ministro Ayres Britto – como também seus pares dos diversos tribunais – bem que estão precisando de um cursinho elementar de redação, para aprender a falar como falam os demais mortais. O voto do ministro sobre a tal de homoafetividade lembra desde as enxúndias de Rui Barbosa ao falar arrevesado de Yoda, o mestre Jedi de Guerra nas Estrelas. No que não tem nada de original, este modo afetado de redigir é vício profissional dos causídicos. Contamina desde os vulturinos ministros dos Supremos aos rábulas de porta de cadeia. Como se falar difícil fosse demonstração de inteligência. Para estes senhores, colocar o adjetivo antes do verbo é atestado de estilo.

Defendendo a tal de união estável entre homoafetivos, o ministro apela a Platão e Max Scheler: “É Platão quem o diz -, “quem não começa pelo amor nunca saberá o que é filosofia”. É a categoria do afeto como pré-condição do pensamento, o que levou Max Scheler a também ajuizar que “o ser humano, antes de um ser pensante ou volitivo, é um ser amante”.

Mas que tem a ver esse amor que leva à filosofia ou o ser amante de Scheler com homossexualismo? Impertérrito, o ministro vai adiante e cita Nietzsche e Hegel: “Um tipo de liberdade que é, em si e por si, um autêntico bem de personalidade. Um dado elementar da criatura humana em sua intrínseca dignidade de universo à parte. Algo já transposto ou catapultado para a inviolável esfera da autonomia de vontade do indivíduo, na medida em que sentido e praticado como elemento da compostura anímica e psicofísica (volta-se a dizer) do ser humano em busca de sua plenitude existencial. Que termina sendo uma busca de si mesmo, na luminosa trilha do “Torna-te quem és”, tão bem teoricamente explorada por Friedrich Nietzsche. Uma busca da irrepetível identidade individual que, transposta para o plano da aventura humana como um todo, levou Hegel a sentenciar que a evolução do espírito do tempo se define como um caminhar na direção do aperfeiçoamento de si mesmo”.

Como se o “torna-te quem és” nietzscheano fosse uma apologia do homossexualismo e o Zeitgeist hegeliano estivesse a serviço dos movimentos gays. Zeitgeist é o espírito do tempo. Pode tanto significar – como significou – nazismo ou comunismo. Zeitgeist, para a Alemanha nazista, era o extermínio dos judeus. Zeitgeist, para a União Soviética, era a ditadura do proletariado, a eliminação da propriedade privada e dos dissidentes. Zeitgeist não quer dizer caminhar na direção do aperfeiçoamento de si mesmo, como pretendia Hegel.

Conhecesse a obra de Nietzsche, o ministro teria melhores momentos a citar. Como este, por exemplo, do Anti-Cristo. Nas páginas finais do ensaio, lemos um projeto de Lei contra o Cristianismo, dada no dia da Salvação do ano Um (a 30 de setembro de 1888, pelo falso calendário).

“Art. 1º - É vício qualquer tipo de antinatureza. A mais viciosa espécie de homens é o padre: ele ensina a antinatureza. Contra o padre não temos razões, temos a casa de correção”.

Pois foram os padres do cristianismo que transformaram o que era normal em anormalidade. Em seu ímpeto filosofante, Ayres Britto não se detém e joga Descartes e Fernando Pessoa em seus arrazoados: “Donde René Descartes emitir a célebre e corajosa proposição de que “Não me impressiona o argumento de autoridade, mas, sim, a autoridade do argumento”, numa época tão marcada pelo dogma da infalibilidade papal e da fórmula absolutista de que “O rei não pode errar” (The king can do no wrong”). Reverência ao valor da verdade que também se lê nestes conhecidos versos de Fernando Pessoa, três séculos depois da proclamação cartesiana: “O universo não é uma idéia minha./A idéia que eu tenho do universo é que é uma idéia minha”.

Pelo jeito, o ministro andou fazendo gazeta nas aulas de Filosofia, se é que um dia as teve. A célebre e corajosa proposição de Descartes tem apenas mais de dois mil anos de idade. Está no Organon de Aristóteles, onde o chamado argumentum ad verecundiam - apelo à autoridade - é qualificado como sofisma. O ministro situa este argumento em uma época “marcada pelo dogma da infalibilidade papal e da fórmula absolutista de que “o rei não pode errar”. Ora, a lógica aristotélica vem de uma época em que não havia papas nem reis.

Mais infeliz é o apelo a Fernando Pessoa. Ao afirmar que “a idéia que eu tenho do universo é que é uma idéia minha”, o poeta não pretendia de forma alguma defender comportamentos sexuais. Conhecesse Ayres Britto a obra de Pessoa, poderia ter feito citação mais pertinente:

O amor é que é essencial.
O sexo é só um acidente.
Pode ser igual
Ou diferente.
O homem não é um animal:
É uma carne inteligente,
Embora às vezes doente.

O ministro-relator – ou talvez seus assessores, não sei –, para demonstrar uma erudição que a nada leva, faz citações destrambelhadas que nada têm a ver com o assunto. Concluo com mais um pérola do ministro:

“Que termina sendo a própria simbiose do corpo e da alma de pessoas que apenas desejam conciliar pelo modo mais solto e orgânico possível sua dualidade personativa em um sólido conjunto, experimentando aquela nirvânica aritmética amorosa que Jean-Paul Sartre sintetizou na fórmula de que: na matemática do amor, um mais um... é igual a um;
“VI – enfim, assim como não se pode separar as pessoas naturais do sistema de órgãos que lhes timbra a anatomia e funcionalidade sexuais, também não se pode excluir do direito à intimidade e à vida privada dos indivíduos a dimensão sexual do seu telúrico existir”.

Que quer dizer o ministro, em seus arroubos poéticos, com telúrico existir? Ou com nirvânica aritmética amorosa? Que tem a ver nirvana com amor ou aritmética? Mas o melhor é a dualidade personativa. Que quer dizer com dualidade personativa? Consulto meus dicionários, desde o Caldas Aulete até o Houaiss, e não encontro verbete algum para personativa.

Em sua pretensão de parecer moderninho, de obedecer ao Zeitgeist de nossos dias – o politicamente correto – o ministro faz da filosofia um coquetel e junta palavras sem sentido para justificar o injustificável, a revogação de um preceito constitucional por um colegiado de pavões. Nada tenho contra uniões homossexuais. Mas há um dispositivo na Carta Magna que reconhece “a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

O caminho correto seria uma reforma constitucional, via Congresso. Há vários projetos de legalização da união estável no Congresso. Mas os parlamentares, com medo de definir-se e perder votos, sempre os protelaram. Seja como for, quem legisla – quando deveria apenas julgar - devia pensar nas conseqüências futuras das leis que elabora.

Todo contrato tem distrato, inclusive o casamento. É claro que aqueles padres para os quais Nietzsche recomendava a casa de correção sempre detestaram esta idéia. Para estes outros personagens vulturinos, casamento é dogma, sacramento instituído pela divindade e portanto eterno. O Brasil libertou-se tardiamente desta ditadura vaticana. Antes tarde do que nunca.

Que acontecerá quando um homoafetivo quiser desomoafetivar-se de seu homoafeto? Se o divórcio já está previsto para o casamento, não vejo nada de parecido para as tais de uniões estáveis. Pelo jeito, o STF finalmente realizou o sonho da Santa Madre, o restabelecimento no Brasil das uniões para a eternidade.