¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

domingo, maio 22, 2011
 
MARX, FREUD E ROCK
PARA OS BOTOCUDOS



Voltando à vaca fria... Há vigarices em que só caem pessoas cultas. O marxismo é uma delas, a psicanálise é outra. Analfabeto algum cairá nesses contos do vigário. Tais vigarices intelectuais só encontram fortuna em países subdesenvolvidos, que seguem a reboque de crendices pseudocientíficas oriundas da Europa. Para atrair intelectuais, uma vigarice precisa estar eivada de conceitos abstratos e palavras difíceis. O concreto não atrai intelectuais. Muito vulgar.

É espantoso ver, neste século XXI, como a imprensa ainda presta reverência a pensadores já obsoletos no século XX e que ainda vivem mentalmente no XIX. Por exemplo, Elisabeth Roudinesco, psicanalista, historiadora, docente, escritora, que entre seus títulos ostenta o de ser discípula de Jacques Lacan e amiga de Jacques Derrida.

Andrei Netto, correspondente do Estadão em Paris, a interrogava em entrevista publicada em 2009: o pensamento de Freud é íntegro e poderoso ainda hoje? Sua força criativa ainda existe?

Responde a Roudinesco:

- Sem dúvida. Creio que vamos assistir a um grande retorno a dois pensadores, inclusive: Marx e Freud. Não ao comunismo e à psicanálise, mas a Marx e Freud. Autores como Marx, Freud, Nietzsche e toda a filosofia da rebelião se tornaram malditos nos últimos 20, 30 anos, quando caímos em um estado de neoconservadorismo. A crise econômica, em especial como a que se passou nos Estados Unidos, vai desempenhar um papel considerável. Vamos voltar ao pensamento da rebelião.

Afirmar isto vinte anos depois da queda do Muro de Berlim revela, sem dúvida alguma, grande coragem intelectual. Ou desfaçatez, virtude que só tem trânsito no universo acadêmico. As grandes vigarices intelectuais só conseguem sobreviver em um caldo de cultura que só o topos uranos universitário propicia. Safadamente, a fulana introduz Nietzsche em seu rol de pensadores diletos, logo Nietzsche que nunca foi cúmplice de vigarice alguma.

Como as idéias de Freud retornarão? Com que aplicação? – pergunta o repórter.

- Retornarão com as de Marx. Mas não sei como serão aplicadas. O que está voltando com muita força é a idéia de que temos um inconsciente, de que o desejo é capital. A psicanálise, bem pensada, permite compreender os moeurs, o inconsciente, o desejo e a sexualidade de uma forma inteligente. É uma teoria do desejo, afinal.

E ainda há quem dê ouvidos a esta senhora. Costumo afirmar que Marx e Freud só morrerão de vez quando morrer esta velharada, que deles fez currículo e ganha-pão. Não é fácil, para um macróbio, olhar para trás e constatar que sua vida toda foi um equívoco, de alto a baixo. O pior é que deixam discípulos, que continuam a defender, por inércia, o obscurantismo. Talvez a humanidade tenha de esperar pelo menos mais duas gerações para libertar-se desta peste intelectual.

Acusações à psicanálise sempre geram reações iradas dos escroques que dela vivem. Não por acaso, a Roudinesco subiu em seus tamancos quando Michel Onfray, no ano passado, desancou a psicanálise e os psicanalistas. Roudinesco acusou Onfray de ter tirado as coisas do contexto – velho argumento de marxistas que não gostam de ouvir citações inconvenientes – e afirmou que Freud de maneira alguma apoiou o fascismo e nunca fez apologia dos regimes autoritários. "Quando sabemos que oito milhões de pessoas na França tratam-se com terapias derivadas da psicanálise, está claro que no livro e nas palavras do autor há uma vontade de causar danos", disse.

Quer dizer: se oito milhões de franceses garantem o bem-estar dos psicanalistas franceses, Freud deve ter razão. É um argumento curioso. Soa mais ou menos como: se um bilhão de pessoas acredita no Cristo, vai ver que deus existe. Se milhões de pessoas acreditaram no comunismo, vai ver que Stalin era um santo. Aos sofismas enumerados por Aristóteles no Organon, Roudinesco acrescenta o da quantidade. Se milhões acreditam em algo, esse algo é, ipso facto, verdadeiro.

Desde muito jovem, abominei a psicanálise. Sempre defendi a tese de que psicanálise é fé, religião, vigarice, tudo menos ciência. O que me levou a ser submetido, em um concurso público, a uma junta psicanalítica. Velha tese dos psicanalhas: quem contesta a psicanálise é porque precisa de psicanálise.

A guilda reage energicamente quando seu sustento é ameaçado. Em 2006, o psicanalista Renato Mezan, nas páginas amarelas de Veja, pretendia que Freud não morrera, mas continuava presente em toda a psicologia e também na cultura. Melhor faria se dissesse que continuava presente em uma cultura daquela classe média que gosta de pagar caro pelo que não entende.

Tentando explicar por que no mundo árabe a psicanálise não tinha muito futuro, Mezan dizia que "nos países islâmicos é mais complicado, não porque os muçulmanos não tenham inconsciente. O fato é que um xiita em crise dificilmente procuraria um analista. É mais provável que ele procurasse um líder religioso".

Ou seja: nós, que abominamos a psicanálise, somos comparados a fanáticos muçulmanos que jamais procurariam um analista, mas sim um líder religioso. Em parte, Mezan tem razão. Psicanálise, como religião, não passa de uma muleta metafísica, um placebo para enfrentar o desconforto - pelo menos para os fracos de espírito - de existir.

Sobre a crônica de ontem, me escreve uma leitora:

Olá, Janer.

A psicanálise não cura, mas proporciona um alívio através de um método muito simples: o bom e velho desabafo. Você paga para ser ouvido sem críticas ou qualquer outra restrição. Posso falar com propriedade porque já fiz análise. Abandonei e não faria novamente, mas na época eu era inexperiente, a angústia estava muito intensa e eu não sabia para onde correr.


A leitora tem mais profundidade do que as Roudinescos da vida. Mas a velha confissão católica pelo menos era gratuita. Tenho uma amiga que – além de ser petista – faz análise. Me confessou algo revelador: “quanto menos minha analista fala, melhor”.

Eu diria que o pagar é o que faz o sucesso da psicanálise. Valoriza-se mais uma coisa pela qual se paga do que algo que se recebe de graça. Eu me considero um excelente analista, nada a ver com os profissionais. Tenho ajudado muita gente em mesa de bar. Mas minha amiga petista vive em pé de guerra comigo. Já lhe sugeri uma hipótese: nos encontramos em um restaurante, eu deixo ela falar, não digo uma palavra e ela paga o almoço e o vinho. Não topou. Ela faz análise há uns dez ou mais anos, e ainda não se deu por curada.

Está chegando ao Brasil, para abrir a série de oito conferências da edição 2011 do ciclo Fronteiras do Pensamento, o assim chamado crítico cultural americano Fredric Jameson, marxista e freudiano. (Pelo jeito, crítico cultural virou profissão nos Estados Unidos).

Segundo Jameson, “a idéia de inconsciente político está ligada à interpretação do texto, o que está por trás dele, e, no final das contas, à própria ideologia e à natureza da ideologia como uma forma de inconsciente. Tentei explorar, e até desvelar, um conceito mais novo e complexo de ideologia que o tradicional. Não chamaria de freudo-marxismo, mas seria uma combinação de Marx e Freud. Assim como para Freud há um inconsciente, que se volta para experiências da infância etc., há também um inconsciente marxiano, que é a fonte da ideologia".

As Fronteiras do Pensamento, em pleno século XXI, trazem ao Brasil um marxista freudiano para nos explicar como se deve pensar. O que é opróbrio vira título. No Rio de Janeiro, apresentou-se hoje, com estádio lotado, Paul MacCartney. O país dos botocudos continua sendo um mercado promissor para o primeiro mundo, que nos exporta seu lixo cultural, Freud, Marx e rock.