¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, maio 29, 2011
 
PRA CÁ DO PRATA UM POUQUITO...


Ao sair do Upamaruty, consegui bolsa no Colégio Nossa Senhora do Patrocínio, dirigido por padres oblatos da Alemanha. Isto graças aos bons ofícios de um fazendeiro do Ponche Verde, don Érico Berrutti Corsini. Que morreu este ano, rijo como um carvalho, aos 108 anos de idade. Foi uma dessas raras pessoas que podem chamar o papa de “aquele guri”. Homem profundamente católico, me consta que permaneceu lúcido até o fim de seus dias, escrevendo nos jornais de Livramento.

Se lá no campo eu vivia em um universo pagão, no Patrocínio, sofri forte doutrinação católica. Fui congregado mariano e – pasma, leitor! – presidente da Congregação Mariana. Como devotos de Maria, era ponto de honra comungar todos os sábados. Os crentes que se preocupam com a sorte futura deste ateu empedernido não precisam preocupar-se. Fiz as promessas de comunhão dos sete sábados e das cinco sexta-feiras. Ou sete sextas e cinco sábados, não lembro mais. O que sei é que ambas garantem, antes da hora da morte, a redenção e arrependimento dos pecados passados. Isto é: paraíso, se existe, são favas contadas.

Foi quando descobri que meus congregados, que comungavam bonitinho nos sábados, ajoelhados e de fita azul no pescoço, passavam as noites de sextas nos bordéis da cidade. Não tive dúvidas. Eu teria uns quinze anos e fazia dois ou três programas de rádio semanais, na rádio Ponche Verde. Desfechei minhas baterias contra a prostituição.

Qual um Savonarola dos pampas, conclamei os pedritenses a acabar com o deboche. Não podemos acabar com a prostituição no mundo. Mas podemos acabar com ela em Dom Pedrito. Vamos fechar esses antros, encaminhar essas pobres meninas a casas de recuperação.

Para meu espanto, a cidade toda se virou contra mim. Entrevistei em um de meus programas o comandante do Exército local. Ele me desautorizou. Que seus soldados tinham instintos e precisavam saciá-los. Até o padre Antônio Paul, pároco local e diretor do Patrocínio, que eu considerava meu aliado óbvio, condenou minha cruzada. Se fechamos os bordéis, que vai ser de nossas empregadinhas? Ele usava – fui descobrir mais tarde – os argumentos de Santo Agostinho: eliminai as cloacas de um castelo e o castelo se tornará sujo e infecto.

Fui alvo de derrisão da cidade toda. Passei a ser chamado de menina-moça. Padre Antônio cortou-me a matrícula no Patrocínio. Mas encaminhou-me para uma bolsa no colégio Santa Maria, em Santa Maria, instituição marista. Que fosse criar problemas em outra freguesia. Lá, encontrei padres mais arejados e passei a militar na JEC, Juventude Estudantil Católica. Resumindo: todos os padres que trabalharam conosco acabaram por largar a batina.

Alguns anos mais tarde, voltei a Dom Pedrito. Havia deixado uma herança naqueles pagos, que me fustigava a alma como urtiga das brabas. Uma guarani linda, que não posso dizer que foi meu primeiro afeto, porque comecei minha vida afetiva com duas mulheres. Voltei, para buscar o que considerava ser meu.

Num domingo de inverno, fomos namorar no pavilhão de exposições rurais, nos arrabaldes da cidade. Ficamos ali uma tarde inteira, até o pôr do sol. Eu mergulhado naqueles olhos negros e profundos, ela me abraçando com carinho. Quando voltamos pela Rio Branco, ao anoitecer, vozes escondidas atrás de janelas nos insultavam dos dois lados da rua. Eu estava roubando algo dos pedritenses, algo do qual se sentiam legítimos proprietários.

Vivemos dias paradisíacos em Porto Alegre, eu, ela e a Baixinha. Sem muita grana, mas carinho sempre sobrando. Foram daqueles dias aos quais só damos valor depois de passados. Eu acordava de madrugada, para enrolar-me n'Ela tão logo sua companheira de quarto saía para o trabalho. No ônibus, sentia-me eleito dos deuses, ao lado de operários com rostos amarrotados por um sono ruim, dirigindo-se azedos à rotina diária de um trabalho extenuante e mal pago. Lépido e faceiro, barbeado e perfumado, jovem e vencedor, eu rumava ao paraíso.

Nem sempre se come pão quente. Por circunstâncias que não vêm ao caso, tivemos de separar-nos. A despedida aconteceu numa noite sofrida, naquela escadaria que desce da Duque de Caxias até a Fernando Machado. Abraçados, choramos até a madrugada. Solo queda al desgraciao, lamentar el bien perdido.

Meses mais tarde, para exorcizar aquele fantasma, escrevi o conto abaixo. Foi uma catarse. Acabei por inscrevê-lo em um concurso literário. Tive o primeiro lugar. Levei-o então ao P. F. Gastal, editor do suplemento literário do Correio do Povo, Olha Gastal, este conto foi premiado em concurso, pelos doutores Fulano e Sicrano. Era sexta-feira à noite, o suplemento saía no sábado. Gastal estava escasso de matéria e o baixou à gráfica. Sem lê-lo. Eu intuía as conseqüências da publicação. A verdade é que queria, como Hernán Cortez, queimar minhas naus.

Pra que, meu Deus? Na segunda-feira, uma expedição punitiva vinda expressamente de Dom Pedrito, liderada por aquele professor de português do “pronome oblíquo nos proêmios de uma frase”, pedia ao Gastal minha cabeça. Escapei por muito pouco de uma surra na Rua da Praia. Fui proibido de voltar à cidade. Não havia nenhum edital do prefeito, apenas a singela promessa da comunidade de castrar em brasas o herege. A ofensa à cidade, ao que tudo indica, havia sido de ordem sexual. Eu havia roubado à comunidade a mulher que cada pedritense julgava sua.

Três ou quatro anos mais tarde, quando o temporal parecia ter amainado, fui revisitar os meus. À noite, com amigos, em um de nossos refúgios na madrugada, os cabarés da Baixada da Paulina, por pouco não fui linchado. A "terrinha" sentira-se ofendida com o conto. "Tudo é uma questão de interpretação", tentei argumentar. O pessoal não se deixou enganar: "não vamos te deixar falar, falando tu nos confundes. Vamos é te bater o brim". Ex-colegas de ginásio, de repente surgidos do nada, me livraram do justiçamento: "no Janer, ninguém bate". Salvo pelo gongo. Mas tive de voltar a Porto Alegre no dia seguinte.

Nada como o tempo para cicatrizar feridas. Hoje volto àquela cidade e sou recebido com carinho por meus companheiros de geração. Mas por que volto a estes dias passados? É que Dom Pedrito está hoje no youtube e até mesmo nos jornais de São Paulo. Uma molecada de quartel andou cantando e dançando o hino nacional em ritmo de funk. A pátria amada ofendeu-se.

Como me dizia um bom amigo, o Pacase: “Dom Pedrito só sai na imprensa da capital quando tem enchente”. Bom, agora não foi enchente. Mas quando Fafá de Belém estuprou o hino no enterro do Tancredo Neves, seu gesto foi visto como magnífica interpretação.

O mesmo fez a cantora Vanusa, em março de 2009, em evento promovido pela Assembléia Legislativa de São Paulo. Na quinta estrofe do hino, em vez de cantar "és belo, és forte, impávido colosso", cantou "és belo, és forte, és risonho e límpido", palavras que fazem parte da estrofe anterior. Na tentativa de disfarçar e consertar o erro, Vanusa repetiu algumas estrofes e perdeu o ritmo da música.

Fafá e Vanusa foram relevadas. Os moleques de Dom Pedrito estão sendo vistos como criminosos.