¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, maio 15, 2011
 
PROTESTO VIRA FIASCO


Sem querer, acabei passando ontem em uma transversal da avenida Higienópolis. Os 50 mil internautas que confirmaram sua presença no protesto contra a transferência de local do novo metrô no bairro se reduziram a 300 gatos pingados fazendo bagunça em frente ao shopping. O Estadão confirmou inicialmente a cifra e depois resolveu aumentá-la para 700, em especial deferência aos bagunceiros. Enfim, 700 ou 300, são bem menos que os 3.500 residentes que assinaram uma petição para mudar a localização do metrô. Estes 3.500 foram definidos como uma minoria que quer exercer pressão sobre o bairro. E os 300 – ou 700, vá lá! – constituem o quê? Na verdade, só serviram para conturbar o tráfego.

É espantosa a leviandade com que os jornais estabelecem que um assunto é polêmica. Ora, não há polêmica nenhuma no caso, mas tentativa óbvia de desgaste do governo estadual por parte de petistas. Tanto que assaram chuchu nas brasas, em alusão a Alckmin, que foi apelidado por um medíocre piadista da Folha de São Paulo de Picolé de Chuchu. (Atenção: longe de mim manifestar qualquer apoio ao insosso tucano. Apenas constato). Que mais não seja, se mudança houver, a estação será deslocada para uns quatrocentos metros adiante e continuará no mesmo bairro. Mais para lá, mais para cá, dá no mesmo.

Os bravos e incondicionais defensores do assim chamado povão, este setor mais pobre da população que só pode ser chamado de povão pelos petistas – quando Fernando Henrique fala em povão está sendo elitista – levaram churrasqueiras portáteis e assaram frango com farofa durante o ato, para estabelecer o contraste com os restaurantes do bairro. Como se em torno ao shopping não houvesse botecos vagabundos servindo frango com farofa e mesmo carrocinhas vendendo pamonha e churrasco de gato. O que só demonstra que os súbitos defensores de Higienópolis não são de Higienópolis e de Higienópolis nada entendem.

Mais ridícula ainda é a argumentação de que o bairro, por ser rico, não quer a presença de pobres. Ora, são exatamente estes bairros ricos os que mais precisam dos pobres. Para sua manutenção. Higienópolis dá emprego a milhares de porteiros de edifício, seguranças, taxistas, garçons, balconistas, bancários, atendentes de hospitais e laboratórios, domésticas. É certamente o bairro que melhor paga estas profissionais. Uma doméstica, aqui no bairro, ganha por mês mais que uma professora da rede estadual. Esta gente está longe de ser rica.

Isso sem falar naqueles profissionais autônomos, tipo barbeiros, alfaiates, costureiras, sapateiros, pedicures, cabeleireiros, marceneiros, encanadores, eletricistas. O bairro é pródigo nestes serviços. Não me venham estes forasteiros dizer que o bairro é hostil aos pobres. Moro num edifício de alto padrão, é verdade. Mas não tenho relação alguma com os milionários. Meu contato mais freqüente é com esta gente pobre do bairro.

Tenho uma especial deferência por garçons. Não há garçom ou garçonete que não me adore nas cercanias. O que me gera problemas. Há um restaurante ao lado de casa, onde costumo ir às vezes à noite para tomar um vinho e, principalmente, ler. Gosto de ler e estudar em bares. Quando o restaurante está vazio, não consigo ler. Os garçons vêm todos à minha mesa para conversar. E não posso recusar-me a isto.

Há uma vidinha miúda no pedaço, que talvez seja bem mais abundante que a dos ricos. É gente que trabalha duro e sente feliz por ter encontrado oportunidades no bairro. Havia um sapateiro uruguaio – mudou-se para Porto Alegre – que à noite exercia seus dotes como exímio paellero num restaurante próximo. Preparava a paella em meio às mesas, para que os habitués fossem degustando a estética e o cheiro do prato. Era seu momento de glória. De sapateiro a maestro cuoco. Num café Fran’s do shopping, a menina que me servia cafezinho me confessou que estudava violino. Ela ficou perplexa quando a presenteei com um CD de Mozart.

Meu figaro é um caso à parte. Galego, veio cedo para o Brasil. Seu salão é um centro de comunicações, muito freqüentado por jornalistas. Não tem placa, só vai lá quem é iniciado. É especialista em câncer. Explico. Por sua navalha, passaram muitos cancerosos, inclusive este que vos escreve. Ele mesmo teve um câncer de tireóide. Estabelece diagnósticos mais precisos que muitos médicos. Quando tenho um caso em minhas cercanias – e não são poucos –, consulto o Julinho. Ele sabe das coisas.

Meu pedicure é especialista em informática. A cada sessão, discutimos os últimos achados da área. Me sinto um analfabeto quando falo com ele. Há mais ou menos um mês, tomei um táxi na Vilaboim. Falava com o taxista de meu desagrado com a arquitetura alta do bairro. “Ah, mas em Reykjavik não é assim”. Como é que você disse? “Em Reykjavik não é assim. Morei dois anos lá”. Putz, eu ainda não conheço a Islândia. Se meu taxista a conhece e eu não a conheço, decidi que vou conhecê-la em outubro próximo.

Na esquina de minha rua, ao lado de uma solene sinagoga, uma coreaninha tem uma loja de quinquilharias. Mal consegue falar o português, mas vende com competência. Nos minutos vagos, senta-se em uma cadeira na rua e fica lendo aqueles jornais que se lêem na vertical. Ao lado, uma líbia instalou uma confeitaria de salgados e doces árabes. Trabalha como um boi, da manhã até tarde da noite. Também mal domina o português, mas deve ganhar uma boa grana.

Higienópolis é um bairro rico, sem dúvida alguma. Mas é bairro generoso com os menos favorecidos. Feliz de quem trabalha aqui. Estes certamente não estavam na manifestação contra a “elite branca” de Higienópolis.