¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, maio 25, 2011
 
SOBRE DOMINIQUE
E PIMENTA NEVES



Nestes dias em que Dominique Strauss-Khan está atrás das grades por estupro e arrisca 73 anos de prisão, é oportuno voltar ao caso de Pimenta Neves, jornalista que em agosto de 2000 matou sua amante, a também jornalista Sandra Gomide, com dois tiros pelas costas. Enquanto o poderoso ex-diretor-presidente do FMI foi preso incontinenti, o ex-diretor de redação do Estadão permaneceu onze anos livre como um passarinho. Com um breve interregno de sete meses de cárcere, é verdade. Pena gentil para crime tão covarde.

Ora, direis, Strauss-Khan já não está mais no cubículo onde estava encarcerado. Certo. Mas está privado de liberdade, com tornozeleiras. O que é, no mínimo, insólito, para um diretor do FMI.

Pimenta Neves foi preso novamente ontem, esgotadas as instâncias recursais, como dizem os causídicos. Fora condenado a 19 anos de prisão pelo Tribunal do Júri de Ibiúna, onde o crime ocorreu. Mas conseguiu, no STJ (Superior Tribunal de Justiça), reduzir a pena, a ser cumprida inicialmente em regime fechado, para 15 anos.

Até lá morreu o Neves, escrevi em 2006. Na época, o jornalista tinha 69 anos e se aproximava da idade confortável da impunidade. Segundo o ex-juiz Luiz Flávio Gomes, que acompanhava o caso, “até lá, Pimenta terá 70 anos e, se ficar comprovado que está doente, poderá ficar em prisão domiciliar mesmo condenado em definitivo".

Considerando-se que cada instância demora cerca de três a cinco anos para julgar um recurso – escrevi então – o leitor já pode ter uma idéia muito precisa de quando estes senhores olharão o mundo por trás das grades: nunca. A persistir esta tendência do Judiciário, teremos uma privilegiada elite de megatérios, todos devidamente condenados pelo rigor das leis e gozando das delícias de suas posses, em meio à afável companhia de amigos e parentes. Com uma pequena restrição, a de não poder viajar ou sair de casa. Mas idade provecta é idade de ficar em casa mesmo. Principalmente quando lei alguma impede a entrada de bons vinhos e champanhes, boa trufa e bom caviar.

Me enganava. Neves voltou a ser preso, quando faltavam apenas cinco anos para a prescrição do crime. É o que dá ser longevo. Mas ninguém imagine que o jornalista amargará mais cinco anos de prisão. Segundo seus advogados, como já cumpriu sete meses, caso receba atestado de boa conduta, poderá solicitar a progressão ao semi-aberto depois de 1 ano e 11 meses, regime no qual o preso pode sair pelo menos cinco vezes por ano para visitar a família. Caso tenha emprego, pode trabalhar durante o dia e voltar para dormir. Para quem foi condenado a 15 anos, a fatura saiu barato.

Ou seja, ficará mais 23 meses na prisão. No total, terá cumprido menos de três anos de cárcere por um crime brutal. Dominique Strauss-Khan está arriscando ver o sol quadrado por sete décadas. É possível que se safe. Já correm boatos na imprensa que seus advogados teriam oferecido uma simpática soma a partir de sete dígitos à família da moça, que vive em condições miseráveis à beira de uma estrada na aldeia de Tchiakoullé, na Guiné. Mas imagino que não será fácil convencer a polícia nova-yorkina da inocência de DSK, como vem sendo chamado.

Segundo a ministra Ellen Gracie, o caso era um dos mais difíceis de explicar no exterior. "Como justificar que, num delito cometido em 2000, até hoje não cumpre pena o acusado?", disse ela, para quem a quantidade de recursos da defesa foi um "exagero".

Tem razão a ministra. Acontece que cabe a ela, como ministra de uma suprema corte, dar a resposta. E não fazer a pergunta. A pergunta, somos nós que a fazemos. Advogados caros e safados, que jamais discutem o mérito da questão, atendo-se aos arabescos colaterais do direito adjetivo, sempre conseguem afastar das grades clientes ricos. Quanto aos pobres, vão irremediavelmente para a cadeia por bagatelas.

Cada vez que comento esta malandragem perfeitamente aceita nos tribunais, não resisto a citar Swift, que já no século XVIII via este recurso tão usual no século XXI. Em As Viagens de Gulliver, escreve o deão, a propósito da hipotética disputa de uma vaca:

- Ao defender uma causa,os advogados evitam cuidadosamente entrar no mérito da questão. Mas são estrondosos, violentos e enfadonhos no discorrer sobre todas as circunstâncias que não vêm a pêlo. Por exemplo, no sobredito caso, não querem saber quais ou direitos ou títulos que tem o meu adversário à minha vaca, mas se a dita vaca era vermelha ou preta, se tinha os chifres curtos ou compridos, se o campo em que eu a apascentava era redondo ou quadrado, se era ordenhada dentro ou fora da casa, a que doenças estava sujeita, e assim por diante. Depois disso, consultam os precedentes, adiam a causa de tempos a tempos e chegam, dez, vinte ou trinta anos depois, a uma conclusão qualquer. De maneira que são precisos trinta anos para decidir se o campo, que me legaram há seis gerações os meus antepassados, pertence a mim ou pertence a um estranho que mora a seis milhas de distância.

Enquanto o direito adjetivo servir para livrar criminosos da cadeia, que ninguém espere justiça neste país. Os americanos, ao que tudo indica, não se deixaram envolver na armadilha dos recursos processuais.