¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, maio 26, 2011
 
SONAMBULISMO E SEXO ORAL


Há vinte ou trinta anos, o ovo era tido pelos médicos como a própria boceta de Pândora, origem de inúmeros males, entre eles o aumento do colesterol sanguíneo e das chances de desenvolvimento de doenças isquêmicas do coração. Eu, que desde a infância gostei de ovos, cheguei a evitá-los por algum tempo.

Hoje, a partir de pesquisas americanas, se considera que um fosfolipídio do ovo interfere na absorção do colesterol, reduzindo notadamente sua captação pelo intestino. Hoje é considerado “um alimento nutricionalmente completo e ideal para o consumo, possui vitaminas A, D, E, e do grupo B e minerais, entre os quais predominam o ferro, fósforo, zinco e selênio, que ajudam na homeostase do organismo. Por ser uma proteína de origem animal, fornece aminoácidos essenciais, os quais nosso corpo é incapaz de sintetizar”. Em duas ou três décadas, o ovo passou de veneno a cápsula de virtudes.

Há cerca de quatro ou cinco anos, comentei algo sobre o paradoxo do Périgord. Como ninguém mais deve lembrar do que seja, volto ao assunto. Lá pelos 80, quando viajaria para a França, recomendou-me um médico de Florianópolis: cuidado com o vinho. Seja moderado. E muito cuidado com os queijos e foie gras. Ora, considero que prescrições médicas devem ser levadas a sério. Era no mês de meu aniversário. Amigos me receberam com muito vinho, champanhe, queijos e foie gras. Eu, beliscando como um tico-tico. Bebendo pouco e comendo menos ainda.

Vai daí que, ao tomar o avião de volta, comprei um Nouvel Observateur. A reportagem de capa era sobre o “paradoxe du Périgord”, algo que até hoje perturba a medicina politicamente correta. Por este paradoxo entende-se o estranho fenômeno de o Périgord ser uma região de alto consumo de patês, queijos e vinhos e, no entanto, seus habitantes gozarem de excelente saúde cardíaca e vascular. Um médico declarava, na reportagem, que inclusive um pouco de boudin no leite das crianças era muito saudável. Boudin é a versão francesa da nossa morcilha. Mais suave e um de meus pratos prediletos. Me senti roubado.

Ao voltar a Santa Catarina, busquei meu médico. De Nouvel em punho. Doutor, o senhor ouviu falar disto, o paradoxo do Périgord? Não, não havia ouvido falar. Então leia esta reportagem. Não leio em francês, disse-me. Tudo bem – respondi – eu traduzo. E traduzi.

Ele fez marcha à ré. Bom... meia garrafa de vinho por dia é sempre bom para o coração. Ou duas doses de uísque. Entende-se que o boudin seja saudável às crianças, contém ferro. Mas nós, médicos, não podemos admitir isto. Seria estimular o alcoolismo.

Há dois anos, li que o vinho tinto pode ser muito mais potente do que se imaginava no prolongamento da vida humana, segundo cientistas que pesquisam drogas para a longevidade. O estudo se baseava em doses dadas a camundongos de resveratrol, um ingrediente de alguns vinhos tintos. Alguns cientistas já estariam tomando resveratrol em forma de cápsula, embora outros acreditem que é cedo demais para tomar a droga, especialmente usando vinho como sua fonte, até que haja melhores dados sobre sua segurança e eficácia.

Pior ainda. Segundo um estudo, publicado em fevereiro de 2009, pelo Instituto Nacional Francês do Câncer (INCA), na relação entre o que comemos e bebemos e as possibilidades de vir a ter um câncer, o álcool é o primeiro a sentar-se nos banco dos réus. Na referência álcool-câncer não existiria "dose protetora". Com seus efeitos invisíveis, "as pequenas e repetidas doses são as mais nocivas", destacava o presidente do INCA, Dominique Maraninchi.

Comentei isto na ocasião. Para Paule Martel, diretora de pesquisa do Instituto de Investigação Agrônoma (INRA), "é desaconselhado todo o consumo diário de vinho". Segundo o estudo, "o consumo de bebidas alcoólicas está associado a um aumento do risco de se sofrer câncer de boca, faringe, laringe, esôfago, cólon e reto, mama e fígado". O risco aumenta 9%, no caso de câncer de cólon e reto, se for consumida uma taça ao dia. E esse risco chega inclusive a 168% para os cânceres de boca, faringe e laringe.

Isto foi em fevereiro. Em abril do mesmo ano, a dose letal de uma taça por dia anunciada pelo INCA foi desqualificada. Segundo um novo estudo, intitulado Coorte Color, pela primeira vez foi demonstrado que o vinho, consumido de uma a três taças por dia – e só o vinho entre as bebidas alcoólicas – , estava associado a uma baixa de 20% da mortalidade por câncer. Estes estudos foram confirmados por pesquisadores da Dinamarca.

Na época, o professor Henri Joyeux, cirurgião cancerologista da Faculdade de Medicina de Montpellier e especialista nas relações entre nutrição e câncer, declarou que “o estudo do Inca confundia os consumidores regulares de álcool forte (uísque, gim, vodca) que aumentavam incontestavelmente os riscos de câncer da boca e das enfermidades cardiovasculares, sobretudo se são acompanhadas do tabagismo”. Ele sublinhava de passagem os aspectos positivos do consumo de vinho durante as refeições como uma digestão facilitada, a prevenção de infecções urinárias e a constipação.

Jean-Charles Tastavy, presidente dos Vinicultores Independentes de Hérault, impetrou em nome da associação Honneur du Vin um recurso administrativo junto ao Ministério da Saúde. Por sua parte, Vin et Societé (que representa o setor francês do vinho) observou que se o consumo de vinho na França foi dividido por dois em 50 anos, o número de cânceres, por sua vez, dobrou. É então difícil bem delimitar os laços de causa e efeito entre o câncer e o consumo do vinho.

E durma-se com um barulho destes. Há dois ou três dias, a Folha de São Paulo acenava com o apocalipse:

“O tabaco, substância presente no cigarro, e o consumo de bebidas alcoólicas sempre foram apontados como um dos principais fatores para desenvolvimento de câncer na região da garganta. Pois agora cientistas afirmam que o sexo oral ocupa o topo da lista entre os comportamentos de risco”.

Segundo a professora Maura Gillison, da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, alguém infectado com um tipo de vírus associado ao câncer de garganta tem 14 vezes mais chances de desenvolver a doença. "O fator de risco aumenta de acordo com o número de parceiros sexuais e especialmente com aqueles com quem se praticou sexo oral", afirmou a pesquisadora.

Essa agora! O homem pratica sexo oral provavelmente desde o Homo sapiens e só hoje, dois milênios após o Cristo, se descobre que a prática produz câncer. Leigo, não vou contestar a medicina. Mas nós leigos também observamos. Que viver dá câncer, disto todos estamos cientes. A pergunta é outra: os médicos sempre analisam o universo dos pacientes. E esse universo todo que gosta do bom esporte e nunca teve câncer? Não entra nas estatísticas?

A medicina me lembra um pouco Os Sonâmbulos, ensaio de Arthur Koestler sobre o avanço da ciência. As idéias que o homem faz do universo evoluíram no decurso dos séculos, mas seria um erro imaginar que o progresso da ciência segue uma curva ascendente regular, escreve o autor húngaro. A linha que parte da crença antiga colocando a terra no centro do mundo e que chega à concepção moderna de espaço, onde nosso planeta é satélite de um sol ele próprio tributário de uma galáxia, esta linha acusa muitos ziguezagues e recaídas no absurdo. Tudo se passa “de uma forma que lembra menos as performances de um cérebro eletrônico que as de um sonâmbulo”.

Reservo-me o direito à dúvida.