¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, junho 20, 2011
 
SOBRE HIPOTRÉLICOS
E EPICARICACIA



A crônica de ontem, sobre as mais lindas palavras do espanhol e outras línguas, rendeu não poucos comentários. Um leitor suíço lembra de uma marca de excelentes lápis suíços, Caran d'Ache. Até aí, tudo muito lógico. O mais difícil de entender é o nome de uma sauna de meus dias de Porto Alegre, Carandache. Vai ver que o proprietário gostou da palavrinha.

Outro leitor me aventou uma outra palavra espanhola, que lhe soa das mais sonoras, escaparate. Tenho uma história com ela. Quando vivia em Madri, freqüentei muito um café antigo e adoravelmente decadente em Lavapiés, onde três velhotas, que me pareciam aquelas três ciganas de Carmen que liam a buena dicha, viviam eternamente jogando cartas. Por mais de década as reencontrei naquela bodega, e sempre em torno ao baralho. Na verdade, vendiam cigarros no café.

Já que falamos de palavras... eu curtia uma colega uruguaia, a quem apelidei de Meiga. Não porque fosse meiga – e ela o era – mas por alusão ao galego. Meigas, em galego, são as bruxas, e fazem meigallos, feitiços. Ela enfeitiçava quem quer que estivesse ao alcance de seu olhar. Lá pelas tantas, uma das velhotas se aproximou de nossa mesa:

- Usted me ha llamado, señor?

Eu não havia chamado ninguém. Sí, soy Trini y usted me llamó. Disse que ela se enganava, mas fiquei intrigado. Alguns minutos depois, decifrei o mistério. Meiga me perguntara como se dizia escaparate em português e respondi: vitrine. A velhota veio correndo.

Falei também de Schadenfreude. Um outro leitor me apresentou epicaricacia como uma boa tradução/neologismo para Schadenfreude. Vem do grego e tem o mesmo significado. É palavra interessante, boa de se jogar no meio de uma palestra, como se fosse algo banal. Bom, no português a palavrinha não entrou. Na Wikipedia, consta como palavra espanhola. Mas não a encontrei nos dois mais importantes dicionários de espanhol, o da Real Academia e o de Maria Moliner.

Consultei então uma boa amiga, harpista, estudiosa do grego e de Nikos Kazantzakis. Que, aliás, acaba de traduzir Vida e Proezas de Aléxis Zorbás, do cretense. Voltarei ao assunto. Segundo a Sílvia Ricardino, a palavra nada tem de neologismo. Já existe no grego antigo e está em Aristóteles. No Bailly (dicionário de grego antigo-francês), epixairekakia = joie qu' on éprouve du malheur d' autrui. Ou seja, satisfação malévola. Os alemães não inovaram. Que mais não seja, alegrar-se com a desgraça alheia é sentimento que deve ter nascido com o homem das cavernas.

Um outro leitor me oferece hipotrélico. Sem ser fanático de Guimarães Rosa, eu já conhecia a palavrinha, de Tutaméia. A meu ver, nem precisa de explicação. Se digo “fulano é um hipotrélico”, só pelo som fica claro o que o fulano é. Mas como ela não existe em português, chamo o Rosa para explicá-la.

"Há o hipotrélico. O termo é novo, de impesquisada origem e ainda sem definição que lhe apanhe em todas as pétalas o significado. Sabe-se só que vem do bom português. Para a prática tome-se o hipotrélico querendo dizer: antipodático, sengraçante, imprizido; ou talvez, vice-dito: indivíduo pedante, importuno, agudo, falto de respeito para com a opinião alheia.

"Sob mais que, tratando-se de palavra inventada, e, como adiante se verá, embirrando o hipotrélico em não tolerar neologismos, começa ele, por se negar, nominalmente a própria existência".

Se bem me lembro desta leitura, lá pelas tantas Guimarães fala de um português para quem se disse que a palavra não existia. “Como que não existe, se eu estou a dizer?” Se eu digo, é porque existe, ora pois!

Sou obcecado por filologia e devo ter mais de cinqüenta dicionários em minha biblioteca. Um dos que mais me agradam é o de Maria Moliner. Pelo que me consta, era uma dona de casa que começou a colecionar palavras e acabou construindo o mais imponente dicionário da língua espanhola, em dois volumes, mais prestigiado que o da Real Academia. Ela parte de uma raiz e vai desenvolvendo as palavras. É obra tão fascinante que às vezes vou buscar uma palavra e acabo mergulhado na leitura do dicionário todo.

Freqüentar os bons autores é um recurso dos mais úteis se pretendemos nos impor em terras estrangeiras. Quem leu, por exemplo, Selma Lagerlöf, Per Lagerkvist ou Karin Boye, certamente entenderá mais da Suécia do que os Svenssons. O mesmo se você falar na França de Villiers de l'Isle Adam ou de Giovanni Papini na Itália. Quem lê Cervantes, Joanot Martorell ou Camilo José Cela tem uma nítida superioridade sobre o espanhol médio. Tive uma bela experiência disto em um dos cursos inúteis que fiz em minha vida, em Madri.

Quer dizer, inútil não foi. Conheci Madri e seus cafés, a Espanha e suas cidades. Mas o curso mesmo não me trouxe nada. Seus professores, em sua maioria, eram medíocres medalhões que nada tinham a dizer a ninguém. Os madriles – e suponho que também os demais espanhóis – quando querem confirmar algo, dizem: “vale!” Vamos hoje ao Gijón? Vale! Quem sabe uma noitada no La Favorita? Vale!

Vai daí que a Meiga perguntou de onde vinha a palavrinha. Uma de nossas professoras, medíocre entre os medíocres, deitou erudição. Ah, é uma gíria recente dos jovens. Quer dizer que concordam com algo.

Deus castiga. Para ocupar meu tempo naquelas aulas anódinas, eu sempre me munia de algum livro. Um deles, que foi uma das leituras mais importantes de meus dias em Castilla, foi Entre trago y bocado, de Enrique Sordo, um tratado sobre todas as cozinhas da Espanha. Muito melhor que ouvir a monótona cantilena de meus professores. Diria, aliás, que foi o livro que melhor me fez conhecer o país. Naquele dia, eu havia levado o Quixote. Li então o prólogo que Cervantes, no século XVI, fez a seu livro:

“Con silencio grande estuve escuchando lo que mi amigo me decía, y de tal manera se imprimieron en mí sus razones que, sin ponerlas en disputa, las aprobé por buenas y de ellas mismas quise hacer este prólogo; en el cual verás, lector suave, la discreción de mi amigo, la buena ventura mía en hallar en tiempo tan necesitado tal consejero, y el alivio tuyo en hallar tan sincera y tan sin revueltas la historia del famoso don Quijote de la Mancha, de quien hay opinión, por todos los habitadores del distrito del campo de Montiel, que fue el más casto enamorado y el más valiente caballero que de muchos años a esta parte se vio en aquellos contornos. Yo no quiero encarecerte el servicio que te hago en darte a conocer tan noble y tan honrado caballero, pero quiero que me agradezcas el conocimiento que tendrás del famoso Sancho Panza, su escudero, en quien, a mi parecer, te doy cifradas todas las gracias escuderiles que en la caterva de los libros vanos de caballerías están esparcidas. Y con esto, Dios te dé salud, y a mí no olvide. Vale”.

Silêncio mortal na sala. Foi um de meus momentos de glória em Madri. Já que falamos de palavras, só para concluir, um trava-língua sueco:

Sju sjösjuka sjömän sköts av sju sköna sjuksköterskor på ett sjunkande skepp.

Ou seja: sete marinheiros mareados são tratados por sete belas enfermeiras em um barco que afunda. Elementar, caro leitor.