¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, junho 26, 2011
 
STRULDBRUGS


Adiós muchachos, compañeros de mi vida,
barra querida de aquellos tiempos.
Me toca a mí hoy emprender la retirada,
debo alejarme de mi buena muchachada.
Adiós muchachos. Ya me voy y me resigno...
Contra el destino nadie la talla...
Se terminaron para mí todas las farras,
mi cuerpo enfermo no resiste más...


Comentei ontem a morte de Ernesto Sábato. Que, por questão de semanas, não chegou a completar um século de existência. Veio-me à mente este tango de 1927, de Cesar Felipe Veldani. Sábato escreveu um rápido ensaio sobre o tema e gostava de citar Discépolo, o autor de Cambalache, tango que vale por um tratado de filosofia: “El tango es un pensamiento triste que se baila”. De fato. Dançar um tango é uma boa ocasião para meditar sobre a vida, o amor e a morte.

Na praça Buenos Aires, aqui perto de casa, há um monumento imponente em homenagem a um obscuro pensador argentino, Bernardino Rivadavia. Não deve ser confundido com Bernardino de la Trinidad Gónzalez Rivadavia y Rivadavia (1780 – 1845), o primeiro presidente da Argentina, que exerceu o cargo por pouco mais de um ano, de 1826 a 1827. Desconheço a obra do Rivadavia da praça, mas seu busto nos traz um dado curioso. Nasceu em 02 de setembro de 1845. E morreu em 02 de setembro de 1945. Um século redondo. Não morreu um dia antes nem um dia depois. É como se, ao completar o século, dissesse: chega. Cansei. Adiós muchachos! Me toca a mí hoy emprender la retirada, debo alejarme de mi buena muchachada.

Falei ainda há pouco de um fazendeiro do Ponche Verde, don Érico Berrutti Corsini. Que morreu este ano, rijo como um carvalho, aos 108 anos de idade. Homem profundamente católico, me consta que permaneceu lúcido até o fim de seus dias, escrevendo nos jornais de Santana do Livramento. Foi meu padrinho de batismo. Em 1947, quando era um jovem de 44 anos. Em 2004, quando fui visitar meus pagos, soube que estava “vivito y coleando”, com 101 anos. Pensei em visitá-lo. Mas tive medo de ver um homem combalido pela idade. Não o visitei.

Ano passado, uma prima me escreve: “Fui a Livramento e estive com o Berrutti”. Não pode, pensei. Pois podia. O homem estava com 107 anos e continuava escrevendo. De meu nascimento para cá, havia vivido mais que minha existência. Pensei novamente em visitá-lo. Por circunstâncias que não vêm ao caso, não o fiz. Perdi a ocasião de visitar uma dessas raras pessoas que podem chamar o papa de “aquele guri”.

Confesso que não invejo estas pessoas. Um século é demais. Cansa muito. Há quem chegue lá mais ou menos incólume. Mas deve ser muito desconfortável acordar cada dia pensando: quando será que ela vem? Hoje? Amanhã? Nesta semana? Melhor partir antes. De preferência, de improviso. Hoje ainda, um de meus amigos me falava da partida, nesta semana, do pai de uma amiga sua. Octogenário, vivia em um sítio em São Paulo. Acordou cedo, como em geral acordam os anciões. Alimentou seus peixes e sentiu-se cansado. Decidiu não trabalhar no resto do dia.

Ainda cedo da manhã, sentiu uma dor no ombro. A filha levou-o ao hospital. Às dez estava morto. Às seis da tarde, sepultado. A morte é sempre uma surpresa. Você acorda para alimentar peixes e nem imagina que naquela noite vai dormir debaixo da terra.

É o que chamo de morte feliz. Nem deu para perceber a chegada da Indesejada das Gentes. Um século? Não, muito obrigado. Uns setenta ou oitenta anos está de bom tamanho. Houve época em que escritores, ao morrer, deixavam uma frase final. Há muito tempo não ouvimos frases finais. As pessoas não morrem mais em casa, junto aos seus. Mas sedadas em hospitais, sem sequer terem consciência de que estão morrendo.

Nas Viagens de Gulliver, de Swift, ao chegar na ilha de Luggnagg, o capitão Lemuel Gulliver encontra uma peculiar estirpe de habitantes, os struldbrugs, seres que nasciam com uma pinta vermelha e circular na testa, em cima da sobrancelha esquerda, sinal infalível de que nunca iriam morrer. É o sonho de um amigo e leitor: “Discordo de ti quanto à imortalidade: se pudesse ser imortal (com este cérebro e corpo e saúde), imagino que seria possível descobrir incessantemente novos desafios e conhecimentos, de modo que não vejo o tédio na imortalidade como um perigo tão grande. Só para dominar o conhecimento atual já iriam séculos e séculos e, então, ainda mais haveria por saber”.

É o que imaginava Gulliver em Luggnagg. Ocorre que tudo que respira fenece. A princípio, o viajante se entusiasma e louva copiosamente tal circunstância, o prazer de presenciar as várias revoluções, o descobrimento de países ainda desconhecidos, a barbárie que devasta as nações mais civilizadas e a civilização que se apodera das mais bárbaras. As louvações são longas e ocupam quase três páginas.

O mesmo não pensam os luggnaggnianos. Os struldbrugs viviam normalmente até os trinta anos. “Depois dessa idade, eram tomados pela tristeza e pelo desalento, que aumentavam até os oitenta. Quando completavam os oitenta, idade tida em Luggnagg como o limite máximo de vida, tinham não só toda a insensatez e todas as enfermidades dos outros velhos, senão muitas outras, nascidas da medonha perspectiva de nunca morrer. Não somente eram opiniáticos, rabugentos, avaros, impertinentes, tolos, tagarelas, mas também incapazes de amizade, e mortos para todos os afetos naturais, que nunca ultrapassavam os netos. A inveja e os desejos impotentes eram suas paixões predominantes. Mas os objetos principais das primeiras são os vícios dos moços e a morte dos velhos. Refletindo naqueles, vêm-se privados de toda possibilidade de prazer; e sempre que assistem a um enterro, lamentam e lastimam que hajam outros chegado a um porto de repouso, a que nunca esperam chegar”.

“Aos noventa, perdem os dentes e os cabelos; já nessa idade não distinguem nada pelo gosto, mas comem e bebem o que se lhes apresenta sem prazer nem apetite. As moléstias a que estavam sujeitos continuam, sem aumentar nem diminuir. Ao falarem, esquecem a denominação comum das coisas e os nomes das pessoas, até os dos amigos e parentes mais chegados. Pela mesma razão, nunca podem saborear uma leitura, pois a memória não os ajuda a irem do princípio ao fim de uma sentença; e esse defeito os priva do único entretenimento de que poderiam, de outro modo, ser capazes”.

“Como a língua deste país sofre contínuas modificações, os struldbrugs de uma época não compreendem os de outra nem lhes é possível, depois de duzentos anos, travarem conversação alguma (além de poucas palavras gerais) com os seus vizinhos, os mortais; e têm assim a desvantagem de viver como estrangeiros em própria terra”.

Nietzsche percebeu isto, quando faz o rei Midas perguntar a Sileno: qual dentre as coisas era a melhor e a preferível para o homem? Responde Sileno: “Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é morrer depressa”.

Depressa, mas não muito, acrescentaria eu. Morrer sim, mas devagar - como disse Dom Sebastião, na batalha de Alcácer-Quibir. Mas também não muito devagar.