¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, julho 06, 2011
 
BIBLIOTECA SEM BÍBLIA
NUNCA FOI BIBLIOTECA



Leitores querem saber o que acho da lei 5.998/11, publicada no Diário Oficial do Executivo desta segunda-feira (04/07) e de autoria do deputado Edson Albertassi (PMDB), que obriga todas as bibliotecas a terem uma bíblia. “O texto não tem a intenção de estabelecer qualquer obrigatoriedade ou constrangimento àqueles que vivem sua espiritualidade em comunidades não cristãs. O que se pretende é garantir o acesso à Bíblia àqueles que assim o desejarem”, salienta o autor. A nova regra determina multa de mil a duas mil Ufirs às bibliotecas que não a respeitarem.

Bom, diria que é redundante. Não posso conceber uma biblioteca pública sem, já não digo uma bíblia, mas várias. Aliás, não consigo conceber nem mesmo uma biblioteca privada sem bíblias. Se chego em uma casa e vejo uma biblioteca, vou logo perguntando: e quantas bíblias você tem? Se não tiver nenhuma, sua biblioteca é capenga. E atenção: quem vos fala é um ateu.

A bíblia é o livro que formata culturalmente o Ocidente. Nele há história e mito, poesia e sociologia, filosofia e – é claro – religião. Foi o primeiro livro que pus no computador, lá pelos anos 90. Havia uma edição digital, que comprei na livraria Ave Maria, aqui do bairro, em cinco disquetões daqueles de 5 ¼. Era a primeira bíblia eletrônica do país e o padre que a digitalizara não se fazia de rogado, cobrava caro pelo seu trabalho. Hoje você encontra bíblias em todos os formatos na rede, e todas grátis.

Tenho mais de dez bíblias em minha biblioteca e uma no computador. É bom para comparar versões, pois cada igreja puxa brasa para seu assado. Sem ir mais longe, na Vulgata Cristo tem primos. Já na King James, sem compromisso algum com o dogma romano da virgindade de Maria, Cristo tem irmãos. Tenho inclusive uma versão marxista entre as minhas. É aquela edição pastoral, publicada pelas Edições Paulinas, com imprimatur de Dom Vital J. G. Wilderink. O editor puxa a tradução para conceitos contemporâneos, nitidamente marxistas, e intercala o texto com intertítulos que remetem à luta de classes. Vejamos alguns deles, em Josué, que mais parecem um manual de reforma agrária:

- Condição para ter a terra
- Solidariedade na luta
- Os poderosos têm medo de um povo livre
- Etapa final da libertação
- Luta e oposição
- Reação dos poderosos

E por aí vai. Só faltou o “povo unido jamais será vencido”. A bíblia é um livro curioso, raras pessoas conseguem lê-la no original. Temos de confiar nas traduções. E cada tradução é um caso. Bart D. Ehrman, Ph. D. em teologia pela Princeton University, é um desses raros privilegiados que conseguem ler os textos originais do Livro. Bem entendido, textos originais não mais existem. O que existe são cópias de cópias de cópias. Erhman saiu atrás delas, onde quer que se encontrassem. Encontrou manuscritos reproduzidos por copistas influenciados pelas controvérsias políticas, teológicas e culturais de seu tempo. Tanto os erros quanto as mudanças intencionais são muitos nos manuscritos subsistentes, dificultando a reconstituição das palavras originais.

Nesta busca, Erhman acabou perdendo sua fé. Confesso que também perdi a minha ao ler a Bíblia. Por isso os padres, durante muito tempo, não recomendavam sua leitura para menores de trinta anos. Em meu caso, pelo menos, não precisei pesquisar nas bibliotecas do mundo todo. As traduções foram suficientes para libertar-me da religião. A saga de Erhman está em seu ensaio O que Jesus disse? O que Jesus não disse? (Editorial Prestígio, São Paulo), livro que recomendo a crentes e descrentes. E a tradutores. Dei-o de presente a uma amiga tradutora do grego e ela o repassou a seu professor, um padre ortodoxo. Parece que até o pope ficou confuso.

Diria que as bibliotecas devem ter não só várias bíblias, como também vários dicionários bíblicos. A Biblia é um livro complexo, cujas partes foram escritas por distintos autores, de distintas línguas, distintas culturas e distintas épocas. Difícil percorrê-la sem um bom mapa. Tenho cinco dicionários bíblicos. O que mais uso é o Dictionnaire de la Bible, de André-Marie Gerard (Robert Laffont, Paris). Excelente. Existe um outro, com uma iconografia soberba, o Dictionnaire Illustré de la Bible (Bordas, Paris). Comprei-o para dar de presente a um amigo. Quando comecei a folheá-lo, mudei de idéia. Meu amigo só o ganharia se eu encontrasse outro exemplar. Por sorte, encontrei.

Em português há um muito eficaz, o Dicionário Enciclopédico da Bíblia, editado pela Vozes, Bijbels Woordenboek, no original holandês. É de autoria de uma competente equipe de teólogos holandeses, coordenados por A. Van den Born. Recomendo vivamente. Tenho um outro dicionário, em espanhol, curiosamente de autoria de Isaac Asimov. Útil, mas precário.

A lei, como dizia, é redundante. Biblioteca sem bíblia não merece ser chamada de biblioteca.