¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

terça-feira, julho 26, 2011
 
GIRA LA COTE


Leitores me pedem um comentário sobre a morte de Amy Winehouse. Pouco ou nada sei sobre a moça, esse mundo do show-business nada me diz. Leitor de jornais, claro que tropecei várias vezes com seu nome. Apenas tropecei e segui em frente. Ídolos não me interessam. E suicidas não me comovem.

Confesso jamais ter lido ou ouvido qualquer canção de Amy. Fui então procurar “Rehab”, que teria sido um de seus grandes sucessos. Fiquei pasmo. Uma época precisa ser mentalmente muito pobre para cultuar uma letra escrota como aquela. O século parece ter sepultado canções belíssimas como as de Edith Piaf, Jacques Brel, Evert Taube, Sven-Bertill Taube, Mikis Theodorakis, Melina Mercouri, para admirar os vagidos desconexos de uma drogada.

Como meus leitores são em geral pessoas cultas, é bastante provável que desconheçam “Rehab”. Reproduzo então as duas primeiras estrofes, e mais não é necessário.

Tentaram me mandar pra reabilitação
Eu disse "não, não, não"
É, eu estive meio caída, mas quando eu voltar
Vocês vão saber, saber, saber
Eu não tenho tempo
E mesmo meu pai pensando que eu estou bem;
Ele tentou me mandar pra reabilitação
Mas eu não vou, vou, vou

Prefiro ficar em casa com Ray
Não posso ficar 70 dias internada
Por que não há nada
Não há nada que possam me ensinar lá
Que eu não possa aprender com o Sr. Hathaway


Seria o hino perfeito das cracolândias e das assistentes sociais que rejeitam a idéia de mandar os zumbis do crack para casas de recuperação. A propósito, semana passada surgiu na cracolândia paulistana uma imagem com fundo e inscrições em dourado onde se liam: Nossa Senhora do Crack. A nova santa chegou a sensibilizar D. Odilo Scherer, o cardeal arcebispo de São Paulo. O líder religioso disse em seu Twitter ter ficado comovido com a iniciativa e que ela alerta para o drama dos dependentes químicos. Estes, por sua vez, demonstraram um certo pudor em relação aos símbolos religiosos e, revoltados, acabaram por destruir a imagem. É uma pena. As inscrições bem poderiam ser encimadas por um nome famoso, Amy Winehouse.

Leio hoje no Nouvel Obs entrevista com Alex Foden, que partilhou apartamento e passagens difíceis com a cantora. Segundo o estilista, em seus piores momentos, Amy chegava a gastar mil pounds por dia em droga, para si e para seu entourage. Conta ainda que a cantora, em sua estada nas Caraíbas em dezembro de 2007, foi mula de si mesma, engolindo 2.100 libras de heroína repartidas em sete saquinhos no estômago.

Comentando esta relação constante entre rock e autodestruição, transcrevi em novembro passado excertos de O Livro dos Mortos do Rock, de David Comfort, no qual o autor comenta o chamado Clube dos 27:

Quatro morreram aos 27 anos de idade. A maioria teve premonições sobre morrer jovem. “Estarei morto em dois anos”, declarou um deles, sabendo muito bem o que estava dizendo aos 25 anos. “Não tenho certeza se chegarei aos 28”, disse um segundo membro do Clube dos 27. “Nunca vou chegar aos 30”, previu um terceiro. A morte assombrou a vida da maioria deles desde a infância. As mães de dois deles faleceu em acidente de automóvel. A mãe de outros dois bebia até cair. Aos 5 anos de idade, um deles viu o pai se afogar. Outro astro insistia em dizer que possuía os “genes do suicídio” porque os membros de sua família haviam tirado a própria vida.

Cada um possuía uma atração fatal. “Vou ser um músico famoso, me matar e me apagar em uma chama de glória!”, exclamou um. Ele deu ao seu grupo o nome de Nirvana, definindo o termo como “a paz absoluta da morte.” Outra estrela, estudante do Livro tibetano dos mortos como muitos dos outros, deu à sua banda o nome Grateful Dead. Outro nomeou seu grupo The Doors, uma porta para o outro mundo, além de descrever sua música como um “convite às forças do mal.”

Outra lenda viva, obcecada pelo fantasma do “carma instantâneo”, disse que faria o seguinte quando finalmente encontrasse o mensageiro da Morte: “Irei agarrá-lo pelas bochechas e lhe darei um beijo molhado na boca mofada, porque só há uma forma de partir – encarando o vento e rindo pra caralho!.” Outros demonstravam uma curiosidade irresistível sobre a vida além da morte, como observou o meio-irmão do próprio Rei do Rock:

“Era como um devaneio para saber até onde ele poderia chegar – era quase como se ele procurasse a morte –, apenas para ver o que havia do outro lado e depois voltar.” Embora cada um dos Sete tenha alcançado o auge da fama durante uma breve vida, só foram tipificados como imortais após sua autodestruição. O namoro de cada um deles com a morte adquiriu vida própria até assumir proporções mitológicas, tornando-se um tipo de calvário para sua legião de fãs.


Suicidas não me comovem, dizia. Há pessoas que têm sérias razões para matar-se, como doenças terminais ou mesmo impasses políticos. Não é o caso destes ídolos incensados pela mídia, que têm a fortuna nas mãos e a vida pela frente. Se quiserem destruir-se, estejam a gosto. O deplorável, nisto tudo, é a reação da imprensa.

Em junho, morreu um dos grandes escritores do século passado, Ernesto Sábato. Mereceu tímidas notas da imprensa internacional. Ontem ainda, morreu Mihalis Cacoianis, um dos grandes cineastas contemporâneos, diretor de filmes que não morrem, como Zorba, o Grego e Ifigenia. Recebeu não mais que algumas linhas dos jornais. Semana passada, a mezzo-soprano Catherine Jenkins, belíssima e dona de uma voz soberba, apresentou-se em São Paulo. Alguém ficou sabendo? Salvo raros aficionados, ninguém tomou conhecimento da passagem de Jenkins pelo Brasil.

Morre uma drogada britânica, autora de letras medíocres onde canta sua dependência das drogas – como se isto a alguém interessasse – e os jornais do mundo inteiro lhe abrem as páginas. As notícias de sua morte suplantaram as do massacre na Noruega.

Triste tempo, este nosso. Já houve dias mais inteligentes. Em janeiro de 1901, quando Giuseppe Verdi morreu, mais de cem mil italianos acompanharam seu féretro pelas ruas de Milão. Arturo Toscanini conduziu orquestras e coros combinados de toda a Itália em seu funeral.

Hoje, a imprensa celebra o suicídio de mais um mito criado pela própria imprensa. Mito passageiro, que amanhã só será lembrado por ter pertencido ao Clube dos 27. “Va, pensiero” é eterno. “Rehab” dura um segundo. Nosso século trocou o eterno pelo fugaz.

Gira la cote. Quem mais se habilita?