¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, julho 07, 2011
 
MANHÃ DE FRIO *

Ney Messias



Uruguaiana – 2° Distrito – De quando em quando faz bem uma lição de silêncio e de obscuridade, como as que recebo, neste recanto do mundo onde a hora enregelada não tem a sonoridade dos momentos urbanos. No frio ou no calor a cidade é uma feira de demonstrações onde todas as vaidades querem fazer ouvir mais alto sua voz. Tudo na cidade faz flutuar na superfície da alma a volúpia das competições, volúpia que se estereotipa no comportamento em geral – moda, canções, anúncios. A cidade é, por excelência, anunciadora de novos estilos que duram o suficiente para que outros sejam inventados e impostos pela insaciabilidade da indústria.

O tempo nas aglomerações é eminentemente social: o velho ritmo das estações – primavera, verão, outono, inverno – perde a pureza que foi criadora de mitos, para adquirir um estado de poluição. Nas cidades o calor é emulação entre sorvetes e refrigerantes, assim como o Natal, curiosamente, é uma ordem para comer nozes e matar perus; o frio é motivo para mais largo recurso às estufas elétricas ou a gás, estilização desencantada das antigas fogueiras nemorais, e dos humildes fogões familiares onde a lenha crepitava os seus luxos de incêndio domesticado.

Frio e calor tornaram-se expressões da onerosa comunicação da economia em litígio: a descoberta de uma nova batida de limão, que só veio pôr em realce a marca de um rum que pretende impor suas qualidades, contende com o anúncio dos conhaques. Tudo isso, como pano de fundo à aventura dos navegadores lunares, põe às portas da cidade dos homens o estandarte da emulação. Não há, pois, nas cidades, o prestígio do silêncio, nem é possível a tranqüila obscuridade que aqui no campo faz de cada um de nós uma espécie de disponibilidade da natureza.

Depois de uma longa viagem de ônibus, desde o caos das grandes avenidas empanturradas de buzina até a linha reta dos horizontes do pampa, acidentalmente encurvados pelo discreto dar de ombros de uma colina – o vago “não me importo” da terra que ainda é a antiga terra – fico a sentir o ritmo deste mundo indiferente ao litígio e às aventuras. Aqui, tudo o que os homens fazem para emergir da obscuridade e pousar nos galhos da fama como pássaros satânicos, parece sonho.

Nesta manhã sem vento, com um frio que se assemelha às cordas tensas de um monstruoso e invisível violino, não tem realidade alguma a chegada à lua dos astronautas que são a vanguarda da técnica. À beira do fogo, que com pentes fulvos penteia a lareira os galhos secos de angico, enquanto o joão-de-barro faz tremer as nervuras do cinamomo que perdeu todas as folhas para a geada e para o vento, vejo, no frio deserto da manhã, o pouso sereno de uma solitária calhandra no aramado que foge, hirto e congelado, para o fundo da planura.

Tenho a impressão de que a cena é eterna, e de que a hora hibernal continuará branca e gelada, imóvel e obscura mesmo depois que o homem tenha conseguido ultrapassar a barreira da gravitação do seu distrito telúrico para povoar, com suas angústias, os astros ainda desertos dessa extrema especialização da luz e da matéria que se chama vida.

O inverno aqui é inverno mesmo: um silêncio transparente dentro do qual nascem os cordeiros, brancos e leves como flocos de nuvens que o sol acaricia, um sol que se fez frágil para acariciar melhor essas vidas que surgem na total ignorância de seus destinos. Além rompe tímida a algaravia das caturritas, como se recém, na primeira manhã do mundo, uma garganta viva, adivinhando a futura presença do homem, estivesse a tentar a violência de uma palavra, o preâmbulo de uma gramática.

* Publicado em O Construtor de Mistérios, 1975, antologia de crônicas de Ney Messias, organizada por este que vos escreve.