¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, julho 05, 2011
 
MEUS INVERNOS


Pelo que leio, está fazendo um frio de renguear cusco no Rio Grande do Sul. Segundo os jornais, em 24 cidades as temperaturas têm sido negativas. Aqui em São Paulo, o inverno não chegou a tanto. Mas é certamente o inverno mais gelado que passei nos vinte anos que vivo aqui. Os dias amanhecem com 10, 12 graus e na madrugada já se teve 3 graus. O que é insólito nesta geografia. Os paulistanos apelaram a capuzes e andam hirtos nas ruas.

Gosto do inverno. Mas não no Brasil. Nossas cidades estão despreparadas para enfrentá-lo. Na Europa, pode fazer -15° ou – 20° na rua. Mas nos apartamentos e bares, nos ônibus ou carros, a temperatura está sempre em torno dos 22 ou 25 graus. O que gera um problema. Você se abriga para enfrentar o frio na rua e acaba transpirando dentro de restaurantes. A estratégia é simples. Use roupas internas leves e um casaco grosso por fora. Uma vez no bar, logo após entrar, tire o casaco, para que o corpo se adapte à temperatura ambiente. Se não tirar, ao sair na rua você vai enregelar.

Em minha primeira viagem à Europa – e já lá vão quarenta anos – cometi um grossa besteira. Levei cuecões daqueles que chegam aos tornozelos e blusas de malha dupla. Suei como se estivesse não no inverno, mas no inferno. Lá em Estocolmo, acabei dando minhas lãs a uma amiga que gostava de esquiar. Enfrentei sem nenhum desconforto o inverno sueco, com camisas leves e um parka pesado por cima. Gosto de temperaturas em torno a zero grau. Mas não aqui. Em casa, posso me defender do frio com uma estufa ou climatizador. Nos bares, a tendência é enregelar.

Se bem que já estão surgindo em São Paulo aqueles fogareiros altos, alimentados com gás, que aquecem quem está embaixo. Eu os vi pela primeira vez há uns dez anos em Paris. Dá um certo ar surrealista aos cafés. A neve caindo e as pessoas sentadas tranquilamente nas terrasses, como se estivessem em pleno verão. Mais ainda, muitas tomando sorvetes. Uma das coisas que me agrada em Bruxelas é assistir a uma nevasca na Grand Place, enquanto tomo uma Leffe gelada ao lado de uma lareira.

Gosto de frio, dizia. Minha idéia de paraíso é uma manhã em Paris numa terrasse, com um solzinho de inverno, temperatura entre oito e dez graus, uma Leffe e jornais e livros para ler. É rotina com a qual enfrentaria serenamente a eternidade. O inverno dá enorme significado aos bares. São úteros quentinhos nos quais nos refugiamos para enfrentar a intempérie. Basta atravessar uma porta para fugir ao frio e mergulhar na mornidão.

Vivi invernos marcantes em minhas andanças. Viajei para o Saara argelino em plena Aïd al-Adha, a festa do sacrifício muçulmana, que geralmente cai em dezembro ou janeiro. Há quem pense que o Saara é uma região quente. Nada disso. É um país gelado que aquece durante o dia. Durante quinze dias, percorri as montanhas do Assekrem, ora em Land Rover ora em lombo de camelo. (Em verdade, trechos curtos, para que o turista tenha a sensação de andar de camelo. Que nem são camelos, mas dromedários). À noite, dormíamos em tendas ao relento ou em casas que nos eram abertas em algum oued. Oued é um rio subterrâneo que às vezes aflora à superfície. E as águas vêm com força. Se algum dia você ouvir falar de pessoas que morrem afogadas no deserto, acredite. Acontece.

Bom, no deserto não chove. Então, normalmente, as casas não têm teto. As temperaturas noturnas descem a -15, -20. Eu me enrolava nas cobertas e sofri mais que o papa em suas longas missas no Vaticano. Se tinha vontade de urinar, que a bexiga estourasse, mas eu não saía da cama. Xixi, só quando o sol saísse.

As noites eram mágicas. Um silêncio que chegava a zumbir nos ouvidos perpassava pelos picos do Assekrem. Um céu esplendoroso, daqueles que só vê no deserto, iluminava a noite glacial. Amontoados em torno à fogueira, ouvíamos histórias dos guias tuaregues, contadas pausadamente, numa lentidão que chegava a cansar. Apesar do frio, não sentíamos vontade alguma de ir para baixo das cobertas.

Ah! Foram também quinze dias sem tomar banho, comendo alho e areia. Em Argel, enchi uma banheira de água e deitei. A água foi se tornando preta que nem petróleo. Esvaziei a banheira e renovei a água. Desta vez ficou marrom. Só na terceira vez permaneceu branca.

Outro inverno que não dá pra esquecer, eu o vivi nas costas da Noruega. Só que não era inverno, mas pleno verão boreal. Ocorre que nos verões árticos a temperatura pode descer a zero e menos graus. Navegando pelo litoral, chegamos ao Trollfjord pela meia-noite. É um fjorde pequeno, cerca de dois quilômetros de comprimento, mas certamente o mais fascinante da costa norueguesa. O navio quase bate na montanha, é pleno dia à meia-noite e a paisagem circundante é de tirar o fôlego. É quando os tripulantes oferecem aos passageiros uma sopa quente de frutos do mar. Nunca tomei sopa melhor em minha vida. Aqueceu até a alma.

O inverno mais duro, eu o vivi no Canadá. Estava em Ottawa e a temperatura desceu a -23°. O chato é a coriza que escorre sobre o bigode, formando uma espécie de bloco de gelo. Quando cheguei a Quebec, a temperatura havia subido a 0°. As crianças brincavam felizes na rua, como se estivessem saudando a primavera. Tenho uma boa lembrança de uma ruela cheia de restaurantes, onde foi aberta uma senda para os transeuntes. A neve chegava à altura dos ombros.

Muitos foram os invernos de minha vida. Quando cheguei a Estocolmo pela primeira vez, em 71, era pleno inverno e escuridão às três da tarde. Me senti em Plutão, e muito contente por estar em Plutão. Neve para mim era novidade e me fascinava. Fascina de início, quando é branquinha. Depois vai se transformando em uma lama amarronzada e só serve para atrapalhar a caminhada. Aí você começa a se perguntar: mas que me deu na cabeça para vir aqui?

No Brasil, há um certo narcisismo em torno ao inverno. As cidades parecem orgulhar-se de suas baixas temperaturas. Medem-nas no pico mais alto da região, na madrugada, e as apresentam como se fosse a temperatura normal da cidade durante o dia. Coisa de país tropical, de Terceiro Mundo. Em país decente, o frio é uma praga que atrapalha a vida de todo mundo.