¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, agosto 19, 2011
 
ÀS VIÚVAS DO KREMLIN


O final do século passado foi bastante agitado, tanto quanto seu início. Se 1905 é um ensaio geral para 1917 e 1917 marca o início da mais longa tirania do século, o final dos 80 marca a queda daquele muro que parecia construído para a eternidade e o desmoronamento da União Soviética e do comunismo. Temos hoje mais uma efeméride da qual as esquerdas não querem nem ouvir falar.

Há exatamente 20 anos, Gorbachov, quando se encontrava em férias na Criméia, foi confinado em sua datcha e declarado "incapaz de assumir suas funções por motivos de saúde". Era uma tentativa de golpe perpetrada pelos apparatchiks, KGB e alguns militares. O poder foi assumido pelo vice-presidente da URSS, Gennady Yanaev, que declarou estado de emergência, restabeleceu a censura e emitiu uma proclamação justificando o golpe.

Era o começo do fim da União Soviética. O golpe foi abortado três dias depois, quando Gorbachov voltou a Moscou e mandou os golpistas para a prisão. Eu perambulava em Paris naqueles dias. O Libération exclamou em sua primeira página a manchete certamente mais curta da história do jornalismo:

GUÉRI!

Ou seja, curado! Dali pela frente, a história começou a marchar em ritmo acelerado. Menos de um mês depois, o Conselho de reconhecia a independência da Estônia, Letônia e Lituânia. Nos meses seguintes, assistimos à proclamação de independência de várias outras repúblicas. Em 8 de dezembro, Rússia, Bielorrússia e Ucrânia formaram a Comunidade de Estados Independentes (CEI). No dia 21, onze das quinze repúblicas soviéticas aderiram à CEI. No natal, Gorbachov renunciou e declarou que a União Soviética deixaria de existir oficialmente no último do dia do ano. Todas as repúblicas que formavam a URSS foram reconhecidas internacionalmente como estados independentes.

Ex-URSS, portanto. Quando propus a palavrinha a meus colegas da Folha de São Paulo, acharam que eu me precipitava. Nada disso. A imprensa internacional a adotou incontinenti. Na época, eu já escrevera dezenas de artigos sobre a URSS, comunismo e países do Leste europeu. Decidi reuní-los em um volume, que titulei como Crônicas da Guerra Fria. Feliz, sentindo-me como alguém a quem finalmente os fatos davam razão, enviei-o a umas vinte editoras. Exceto de uma, não recebi resposta alguma. E a resposta que recebi era negativa. Não me dei conta então que, enquanto eu exultava, as viúvas todam estavam de luto, carpindo um cadáver fresquinho. Hoje, você pode lê-lo aqui:
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/cronicasdaguerrafria.html

Hoje, a poderosa União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em prosa e verso cantada por escritores venais como Pablo Neruda, Jorge Amado, Aragón, Brecht, Sartre e tantos outros, pertence a um passado distante. O tosco e rude messianismo russo impressionou os intelectuais do Ocidente a tal ponto que Sartre, ao voltar de uma viagem à União Soviética, declarou ao Libération, em 1954: "A liberdade de crítica é total na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E o cidadão soviético melhora sem cessar sua condição no seio de uma sociedade em progressão contínua. Exceto alguns, os russos não têm muita vontade de sair do país... não têm muita vontade de viajar neste momento. Têm outra coisa a fazer em casa".

Mais uma pérola: "Lá por 1960, antes de 1965, se a França continua estagnada, o nível médio de vida na URSS será de 30 a 40% superior ao nosso. Qualquer que seja o caminho que a França deve seguir para sair de seu imobilismo, para recuperar ser atraso industrial, para se constituir como nação diferente da de hoje, ele não pode ser contrário ao da União Soviética".

Nisso é que dá receber mordomias de Moscou. Esta prostituta respeitosa, que chegou a receber o prêmio Nobel e o recusou de puro despeito, pois Camus o havia recebido antes, foi guru de toda uma geração de tupiniquins. Entende-se agora melhor Nelson Rodrigues quando dizia ser o pensamento de Sartre de uma profundidade tal que uma formiga o atravessava com água pela canela.