¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, agosto 21, 2011
 
DEPUTADO PROPÕE DIREITO
DE VISITA AOS CACHORROS



Gosto de cães. Tive vários em minha infância, com eles cacei e brinquei. Mas sempre os vi como animais, não como gente. Tenho deles ternas lembranças. Havia um ovelheiro, o Tigre, com cuja ajuda um peão podia levar sozinho um rebanho a uma mangueira. O Solón era quase suicida. O ratão do banhado faz sua toca nas sangas abaixo da linha d’água, e depois sobe para terra seca. Solón, quando perseguia um ratão, mergulhava no rio e se enfiava na toca. Se eu não o puxasse, morria afogado.

Do Tição, tenho uma lembrança patética. Carros eram um acontecimento lá na Linha Divisória, passavam um ou dois por semana. Os cachorros estranhavam e atacavam aqueles seres alienígenas. Numa dessas acometidas, Tição teve uma pata quebrada. E com ela ficou pelo resto de seus dias, afinal naqueles pagos mal havia médico para gente. Certa manhã, eu cavalgava com Tição ao lado, em suas três pernas. Ele descobriu uma lebre dormindo. Pegou-a na boca e me trouxe. A lebre, safada, se fingiu de morta. Quando apeei do cavalo, ele a soltou. Ela deu um pulo e mandou-se à la cria. O coitado tentou persegui-la com suas três pernas. Nunca vi um cachorro tão frustrado.

Retoucei com minha cachorrada em minha infância, adorava rolar com eles naquele mar verde de alhos-bravos. Abandonei-os quando fui para a cidade. Ao voltar a Ponche Verde, mesmo após meses de ausência, de longe eles me reconheciam e corriam a saudar-me. Cachorro no campo, eu entendo. Já o cachorro urbano, este me parece uma espécie de ersatz ao afeto humano. Quando morreu minha mulher, não faltou quem me recomendasse um cão. Só o que faltava, trocar a lembrança de uma pessoa querida pela companhia de um animal.

Foi em Estocolmo, no início dos 70, que tomei contato com o apreço dos europeus pelos cães. Lá encontrei, para minha surpresa de latino, centenas de publicações dedicadas aos cães e seus cuidados, desde revistas e jornais até inesgotável literatura especializada. Nas bibliotecas e livrarias, ao lado de O Primeiro Bebê, encontravam-se títulos como O Primeiro Cão, O Primeiro Gato. Nos supermercados, alimentação para cães e gatos, nacional e importada, era consumida paralelamente pelos estrangeiros. Não só por ser mais barata, como também incomparavelmente mais gostosa que certos pratos nacionais, como o surströming e blodpudin (arenque podre e pudim de sangue).

Fatos ilustravam o zelo dos suecos por seus cães. Em 09.08.72, o Aftonbladet apresentava uma reportagem de última página sobre um pastor alemão que ficou uma semana encerrado em um canil, num sítio em Eslöv, por descuido da proprietária. Os vizinhos, normalmente cheios de dedos no caso de relacionamento com seres humanos, foram sensibilizados pelos uivos do cão e passaram a alimentá-lo por uma abertura. O animal foi libertado por um comitê constituído pela polícia, inspetor dos serviços sanitários, veterinário e representante da Liga de Proteção aos Animais, de Lund. Sua proprietária mereceu o repúdio nacional. Ainda em 72, surgiu — e foi festejada pela imprensa — em Estocolmo a primeira ambulância para animais da Europa. Seu telefone estava acoplado ao 90.000, número memorizado por todos mal aprendem a falar, pois atende casos de doença, assalto, suicídio, incêndio e emergências outras. A ambulância não atendia apenas cães e gatos, como também raposas, esquilos e texugos feridos nas estradas ou aves marítimas envenenadas pelo petróleo. Olle Larsson, proprietário e chofer da ambulância, contava que a polícia muitas vezes o auxiliava a abrir caminho no tráfego, com sirenes, para um socorro mais rápido aos animais feridos.

Mas foi em Paris, alguns anos mais tarde, que me deparei com o absurdo. Á encontrei livros como o Guide du Chien en Vacances, mapeando a rede hoteleira destinada aos cães, com hotéis divididos em um, dois e três ossos, sendo que nesta última categoria os cuscos eram postos à mesa com guardanapos e servidos, na sobremesa, com crêpes au Grand Marnier. Sem falar no Recettes pour Chiens et Chats, best-seller que em seu prefácio oferecia às donas-de-casa a alternativa de, em vez de utilizar enlatados, cozinhar para o prazer de seus fiéis companheiros. O livro dava uma série de receitas à base de carnes e peixes, mais manteigas caninas, para animais carnívoros ou vegetarianos, mais bebidas e molhos, tudo aquilo como entrada para depois sugerir pratos de resistência, onde se previa também um regime sem ossos, mais bolos e doces, mais cosméticos e remédios, onde se especificava desde pastas dentifrícias com mel e óleos de massagem pós-banho.

Encontrei até mesmo uma teologia canina, L’animal, l’homme et Dieu, ensaio de Michel Damien, que defendia a tese de que o Cristo havia morrido também pelos animais.

La solidarité de l’homme avec l’animal n’est pas seulement biologique, naturelle, elle est ontologique, transcendantale, évangélique. Le Christ est mort aussi pour les chiens. L’Eglise catholique est malheuresement absente de ce débat. Les animaux n’ont reçu aucun statut de sa part. Et pourtant, si l’animal n’a pas la notion de Dieu il a en revanche celle de l’homme qui est à l’image de Dieu. D’ailleurs, les animaux nous ont précédés sur la Terre et nous en sommes, d’une manière ou de l’autre, tributaires.

“Il nous attendent sur le chemin du Christ”. Ils sont notre prochain. Leur souffrance mystérieuse est une “participation aux Béatitudes. Il y a un Evangile de l’animal, qui lui aussi meurt dans les bras de Dieu”. L’animal a ceci de commun avec le Christ qu’il meurt pour le monde et que son sacrifice est indispensable à l’équilibre de ce monde.


Enfim, a teologia sempre se nutriu de loucura, nada de espantar que alguém julgue que Cristo subiu à cruz para redimir a cachorrada. O mais difícil para mim, naqueles dias vividos há mais de três décadas, foi entender a legislação sobre os cuscos. O Código Civil contemplava o direito de visita aos cães. Um marido em instância de divórcio, em Cretéil, obteve de um juiz o direito de visita a seu cãozinho, cuja guarda havia sido conferida à sua mulher. O casal só se entendia a respeito de duas questões: a ruptura e o desejo de ver regularmente o animal. O magistrado, após ter constatado oficialmente que havia convergência de pontos de vista da parte do marido e da mulher em relação ao cachorro, concedeu ao marido o direito de visita durante dois fins de semana por mês e de guardá-lo por parte de suas férias.

Coisas de um país que se cansou da civilização e entrou em decadência, pensei então. Pois não é que agora, neste país nosso que ainda nem chegou à civilização, leio que um deputado apresentou um projeto de lei para regulamentar a guarda de animais de estimação em caso de divórcio. O texto prevê períodos de visita predefinidos entre as partes e até a punição para o caso de um dos cônjuges permitir o cruzamento do animal sem prévia consulta. Apresentado em abril passado, o projeto aguarda parecer da Comissão de Meio Ambiente.

Como sempre, copiamos sempre o pior do Primeiro Mundo. Se aprovado o projeto idiota, os tribunais serão atulhados por pendengas em torno a cachorros e gatos. Enquanto isso, os Zés Dirceus da vida botam fé na prescrição de seus crimes.