¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, agosto 26, 2011
 
IN MEMORIAM RICHMOND


Em algum momento de sua obra, Kafka fala de uma casa ideal, onde todo mundo poderia entrar a qualquer momento e sair quando bem entendesse. Ora, essas casas sempre estiveram a seu lado, em sua Praga natal. São os bares e restaurantes.

Em A Invenção do Restaurante – ensaio que recomendo aos amantes da bona-xira - Rebecca L. Spang estuda o fenômeno em suas origens, ou seja, em Paris. Considero os restaurantes um dos mais esplêndidos achados da história humana. Foi neste livro que descobri que os restaurantes evoluíram das maisons de santé até o que hoje conhecemos por restaurante.

A palavra decorre de uma paráfrase de um versículo de Mateus (11:28) "Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei". Lá pelos estertores do século XVIII, um dos primeiros restaurateurs da época pôs na entrada de sua casa esta frase um tanto blasfema: "Accurite ad me omnes qui stomacho laboratis et ego vos restaurabo". Ou seja, corram a mim todos vós cujos estômagos padecem, e eu vos restabelecerei.

O nome deriva de uma sopa, chamada restaurant. Com o tempo, passou a designar as casas que as serviam. Faz bem mais de vinte anos que só viajo para visitar estas casas de Kafka. De museus, bibliotecas, parques, cansei. Cada viagem que faço ultimamente é uma peregrinação de um boteco a outro. Neles não vou apenas beber ou comer, mas ler, estudar e contemplar o mundo. Muitos restaurantes na Europa são salas de leitura e trabalho intelectual. Em Paris, foi em cafés que Sartre, Camus, Simone de Beauvoir e tantos outros construíram suas literaturas. Nesses cafés, elaborei minha tese. Terá sido lá que adquiri um vício, o de ler em bares. Me sinto melhor que lendo em casa.

O primeiro restaurante que conheci em Paris foi o Zero de Conduite. Ficava na rua Monsieur le Prince, ao lado do Parc Luxembourg. Já morreu e ressuscitou em Porto Alegre. Ano passado, fui visitar uma amiga. Ela morava na Fernandes Vieira. Certo dia, ao sairmos de sua casa, me deparei com um restaurante na mesma quadra, o Zero de Conduta. Este cara já morou em Paris, disse a ela.

Em meus dias de Filosofia, tive aulas por quatro anos com Gerd Bornheim, intelectual bastante conhecido no Rio Grande do Sul nos anos 60. Foi cassado pelos militares em 69. Em 71, em minha primeira visita a Paris, hospedei-me no Grand Hotel Saint Michel, na rue Cujas, ao lado da Sorbonne. De Grand o Saint Michel nada tinha, era apenas um une étoile muito freqüentado por brasileiros, e gerido pela folclórica Madame Salvage.

Certo dia, ao voltar de madrugada, quando fui pegar a chave, ergue-se de um catre uma calva ilustre e familiar. Era o Gerd, que trabalhava como porteiro da noite. Convidou-me para uma janta no dia seguinte. Fomos no Zero de Conduite, a duas quadras do hotel. O restaurante fazia homenagem ao filme homônimo de Jean Vigo. Foi lá que conheci esse delicioso queijo grego, o fetá. Ora, um Zero de Conduta em Porto Alegre só podia ser obra de quem vivera em Paris nos anos 70.

Foi lá também que conheci uma brava iugoslava de quem muito gostei. O restaurante tinha uma grande mesa de madeira, para umas vinte pessoas, na qual os clientes iam sentando ao lado uns dos outros. Minha tese era sobre Ernesto Sábato. Certo dia, estou em meio a um pichet de rouge, relendo Sobre Heroes y Tumbas. A minha frente, senta-se uma menina com El Tunel em punho. Ali mesmo começou nossa relação. Era uma adorável poeta peoniana, tão altiva quanto seu conterrâneo, Alexandre, o Grande. Acabei por dedicar-lhe minha tese. Naquele almoço, o deus Acaso estava agendando minhas futuras viagens a Dubrovnik, Skopje e Mljet.

Volto a Porto Alegre. Dois ou três dias depois, entrei no Zero de Conduta para uma cerveja. A bem da verdade, nem havia notado que era o Zero de Conduta. Havia uma pequena biblioteca no restaurante, onde encontrei vários livros em sueco, principalmente de culinária. Fui até o caixa. Vem talar svenska här? - perguntei.

- Jag – me respondeu o caixa.

Havia morado cinco anos em Estocolmo. Naqueles dias, eu estava publicando neste blog, em capítulos, minha tradução de Kalocaína, de Karin Boye, talvez o mais alto momento da literatura sueca. Falei de meu blog e passei-lhe meu cartão.

- Ah, és o Janer. Estive em teu apartamento em Paris.

Resumindo: nessas casas de Kafka tive os melhores encontros de minha vida. Neles li, estudei, conversei, aprendi, ensinei, namorei, vivi dias felizes. Quando chego em Paris, antes mesmo de abrir as malas no hotel, vou voando ao Rélais de l’Odéon. É como se voltasse para casa. Meu sonho de paraíso, já devo ter contado, é uma terrasse em Paris, numa manhã ensolarada de inverno, com uma Leffe e vários livros e jornais em punho. Vida eterna assim certamente não seria monótona.

Adoro restaurantes centenários. Se um restaurante atravessou dois ou três séculos, isto é certificado de qualidade. Em Madri, meu dileto é o Sobrino de Botín, considerado o mais antigo do mundo, fundado em 1725. Em Paris, o Procope, fundado em 1686. Há uma discussão sobre a antiguidade de ambos. O Procope pode ter sido fundado antes, mas teve interrupções em seu funcionamento. Já o Botín teria funcionado ininterruptamente de 1725 para cá.

São casas que me dão uma certa idéia de eternidade. Nós passamos, os restaurantes ficam. Eu morrerei, mas o Botín continuará por mais séculos servindo seus magníficos cochinillos y corderos lechales. Embora tenha futuro, lá me sinto um pouco como em uma estalagem da Idade Média. Mal chego a Madri, vou correndo para seus salões ancestrais.

Mas restaurantes também morrem, e já nem falo de São Paulo, onde uma casa com apenas meio século de idade pode ser considerada antiga. Tive nestes dias uma triste notícia. Fechou em Buenos Aires o Richmond, na calle Florida, fundado em 1917 e freqüentado por escritores como Jorge Luis Borges, Oliverio Girondo e Leopoldo Marechal. Foi comprado pela Nike, que deve instalar uma loja no local que foi um dos cenários boêmios da capital argentina.

Ano passado, passei belas tardes no Richmond, em suas poltronas de couro e mesas de mármore rosa, sob seus lustres solenes, acompanhado de uma também bela amiga. Me encharquei em seus tragos largos. Trago largo é um drinque tipicamente buenairense, que vem acompanhado de frutas y otras cositas más. Depois de dois ou três Setimos Regimientos, yo oía clarines.

Perdi também em Buenos Aires um outro café charmoso, El Reloj. Se bem me lembro ficava numa esquina da Suipacha e foi lá que tomei contato com a literatura de Ernesto Sábato. O que conheço de mundo aprendi em bares, não em minhas universidades.

Alguns de meus cafés diletos, contrariando o sentido da História, estão morrendo antes de mim. Mas em Buenos Aires ainda resta o La Biela, onde degustei alguns Malbecs com Sábato. Suponho que o Procope e o Botín só morrerão quando o sol engolir a Terra.

O que está previsto para daqui a cinco bilhões de anos. Até lá, muito vinho há de rolar pelas gargantas.