¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, setembro 24, 2011
 
EN HOMENAJE A EL RATÓN


Leitor me escreve: "Parece que o espetáculo esplendoroso, mas cruel, que são as touradas vai acabar. Cinco mil anos de história pro lixo".

Creio que não, meu caro Marc. Pelo que li, será realizada a última tourada na Catalunha. Mais que apreço pelos touros, me parece que está em jogo um desafio à Espanha. Tendo vivido em Madri – e para lá volto quase todos os anos – nunca assisti a uma tourada. Para começar, por meu asco às multidões. Continuando, como em todos esses grandes espetáculos, o espectador está sempre longe do que está acontecendo. Só com binóculos para se ver o que de fato acontece. Mesmo assim, não consegui escapar de touradas. No verão espanhol, em qualquer bar que você esteja, a las cinco en punto de la tarde, alguma televisão estará transmitindo uma tourada. Assim sendo, acabei entendendo um pouco do assunto.

Tourada é algo complexo, não compreensível a qualquer turista. Há pelo menos três personagens na lídia, o picador, o banderillero e o herói da festa, o toureiro. Mais outros dois, o cavalo do picador e o touro, é claro. O picador é quem dá início ao massacre. Está montado em um cavalo, blindado por cotas de malha, e com uma venda nos olhos. A venda é para não se assustar com a investida do touro. Ou seja, o cavalo anda às cegas. O picador tem uma lança – a pica – com a qual penetra na cerviz do animal. Uma vez picado, o touro não consegue mais erguer a cabeça.

Feito isto, entram os banderilleros. São aqueles valentes que cravam quatro lancetas no lombo do animal já debilitado. Ficam balançando enquanto o touro corre e servem para irritá-lo. Quando ele está reduzido a um caco, entra o herói da festa, com seu “traje de luces”, todo bordado em ouro. Se você assistiu alguma tourada na televisão, deverá ter visto a nonchalance com que o toureiro dá as costas ao touro, e se afasta serenamente sem sequer olhar para trás. É truque. O touro, como todos os herbívoros, tem um olho para cada lado. À sua frente, há um ponto cego, onde ele não vê nada, e é este ponto cego que o herói aproveita para humilhar o touro.

Mesmo assim, debilitado, o touro reage. Em uma temporada em Madri, vi foto espantosa em um jornal. Um touro acertou, com precisão inesperada, o ânus de um banderillero. Levantou-o nas aspas e fez um rasgo de 18 centímetros. Não sei se o banderillero morreu, não acompanhei a notícia. Mas aquele foi certamente o dia do touro.

Uma das coisas que me aprazem na vida é conversar com barbeiros. Bueno, certa vez, a las cinco en punto de la tarde, entrei em uma peluqueria, na calle Echegaray, centro de Madri. Na televisão, uma corrida. O touro começou estripando o cavalo do picador, apesar de sua cota de malha. Entraram os banderilleros, o touro enfiou as aspas na coxa de um deles e o jogou para o alto. Reuniu-se então a Presidência da tourada e decidiram devolvê-lo para o brete, por ser um touro manso. Chamaram quatro vacas que o conduziram de volta às coxias.

- Como touro manso? – perguntei a meu Fígaro.
- Bueno, no es que se pueda afagar como a un gato. Explicou-me melhor. Touro manso é aquele que está familiarizado com o ser humano. O toureiro gosta mesmo é do touro burro. É aquele que, quando sente a pica na cerviz, investe contra a pica e a crava mais fundo no próprio lombo. O touro manso é inteligente. Mal sente a pica, recua. O toureiro já se põe em alerta.

Tourada é algo complexo, dizia. Há dicionários de tauromaquia e é preciso ser um pouco erudito para entender uma tourada. Um dos passes se chama veronica. O toureiro se ajoelha, de costas para o animal, balança a capa e deixa que a besta venha. Bom, pela televisão, assisti a um passe desses. Ocorreu que o herói, naturalmente preocupado com o que lhe vinha pelas costas, olhou para trás. Vaia total da platéia: Cagóóón!

Tudo isto, para saudar El Ratón, a meu ver um touro manso. Em janeiro de 2009, li no El País:

Ratón, la res más cotizada de los encierros, agiganta su fama a golpe de cornadas y sangre

"Lo feliz que me ha hecho este animal no lo cambio por nada. No tiene precio", afirma orgulloso su dueño


El Ratón, um touro de oito anos, ganhou lenda de assassino nas corridas de rua em Valência. Matou um e feriu mais de trinta com cornadas. Tornou-se o herói das festas, ao invés do toureiro. Encheu arenas e seus seguidores acudiram a todos os vilarejos em que foi. Na Internet, são contadas suas façanhas, de forma por vezes exageradas.

El Ratón se tornou celebridade dos bous al carrer, que é como os catalães decidiram chamar as touradas. Tem muitos seguidores, mas também um grande número de detratores. Há quem louve sua valentia, sua bravura e inteligência. Outros o caluniam como covarde, touro que se aproveita de toureiros inexperientes e que os corneia à traição. Enfim, el Ratón não deixa a ninguém indiferente. Segundo Gregorio de Jesús, ex-matador que se dedicou à criação de gado, “es ágil, inteligente, rápido. Muy alegre. No es bruto, no es como los demás toros que actúan por instinto y chocan contra todo. Éste piensa, analiza y después ataca".

Um touro que pensa é um perigo. Ao mesmo tempo, uma atração. Gregório cobrava seis mil euros por cada apresentação de el Ratón, quando um touro de aluguel não custa mais que mil euros. El Ratón se limitava a aparecer umas dez vezes por temporada, em Aragón, Valencia, Cataluña y Navarra, comunidades nas quais o regulamento não obriga a sacrificar as reses após serem toureadas.

Cá entre nós, um dia bem que pode ser do touro.