¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, outubro 13, 2011
 
LOBATO E O FIM DO PAPEL


Leio que a circulação de jornais no mundo caiu no ano passado no mundo todo. Só podia cair mesmo. Para que comprar jornais se posso lê-los em meu computador? Verdade que eu ainda compro. Mas não duvido que em breve me cure da doença. Compro os dois principais jornais daqui de São Paulo. Compro de besta, sei. Ocorre que vício não se abandona da noite pro dia. Jornais estrangeiros, que também chegam aqui no dia, prefiro lê-los na telinha. Antes que M. Dupont saia para comprar sua baguete, eu já li o Monde.

Com a Internet, toda notícia de jornal tem sabor de antiga. Os fatos ocorrem hoje e o jornal só sai amanhã. Mas ainda assim esse meio de comunicação alcança mais pessoas do que a Internet, diz a pesquisa da Associação Mundial de Jornais e Editores de Notícias (WAN-IFRA, na sigla em inglês). Certamente não será por muito tempo.

Os jornais impressos diários tiveram uma queda de 2% na circulação, de 528 milhões em 2009 para 519 milhões em 2010. Esses veículos são lidos por 2,3 bilhões de pessoas no mundo, um número 20% maior do que o 1,9 bilhão de pessoas que a internet alcança. Em muito breve, esta proporção será certamente invertida.

Em 1998, publiquei em uma revista literária da UFSCAR artigo no qual anunciava Monteiro Lobato como o precursor absoluto da idéia da Internet. Curiosamente, os estudiosos de Lobato até hoje parecem não ter percebido isto. Em O Presidente Negro, o taubateano angustiava-se com o desperdício de energia e "os milhões de veículos atravancadores de espaço" - e isso nos primórdios do século passado - necessários para o deslocamento do homem até o trabalho ou lazer. Via a salvação na "fecunda descoberta das ondas hertzianas e afins". O trabalho, o teatro, o concerto passam então a vir ao encontro do homem. As condições do mundo se transformam quando a maior parte das tarefas, industriais e comerciais começam a ser feitas de longe pelo que Lobato chama de rádio-transporte.

Há três quartos de século, antes mesmo de sua viagem aos Estados Unidos, Lobato antevia o fim da maneira de fazer jornalismo da época e antecipava o que hoje é rotina em qualquer redação deste final de milênio. Através de miss Jane, o escritor de Taubaté começa a descrever a sociedade americana do futuro: "Pelo sistema atual – Lobato refere-se a 1926 – o colaborador ou escreve em casa o seu tópico ou vai escrevê-lo na redação; depois de escrito, passa-o ao compositor; este o compõe, passa-o ao formista, este o enforma e passa-o ao tirador de provas; este tira as provas e manda-o ao revisor; este o revê e envia-o ao corretor; este faz as emendas e... e a coisa não acaba mais! É uma cadeia de incontáveis elos, isto dentro das oficinas, pois que o jornal na rua dá início à nova cadeia que desfecha no leitor - correio, agentes, entregadores, vendedores, o diabo".

Toda essa complicação desapareceria. Cada colaborador do Remember, jornal criado na ficção lobatiana, "radiava" de sua casa, numa certa hora, o seu artigo, e imediatamente suas idéias surgiam impressas em caracteres luminosos na casa dos assinantes. Numa época em que computador, fibras óticas e satélites pertenciam ao universo mental de visionários, Lobato fala de rádio-transporte. Se substituirmos esta expressão por modem, temos o criador de Bentinho e Jeca Tatu antecipando, há sete décadas, um jornal que já existe há mais de década. Seus correspondentes há muito enviam seus "caracteres luminosos" para suas redações.

Daí ao leitor recebê-los numa tela em sua casa, basta uma decisão administrativa, já tomada por milhares, senão milhões, de empresas no mundo todo. E quem não tomar está decisão está morto para o mundo. Boa parte do acervo da literatura universal já está digitalizado, e pode ser consultado sem se sair de casa. O que Lobato não chegou a ver, é que se os jornalistas podem “radiar” de suas casas artigos para o jornal, o jornal pode radiar de volta os artigos para o leitor.

Nos tempos pré-internéticos, quando escrevia em Porto Alegre, minhas crônicas não atravessavam o Mampituba. Escassamente chegavam ao interior gaúcho. Hoje, sou lido tanto em Estocolmo como em Nova York, Paris ou Jakarta. Minha única fronteira é o idioma.

Lobato fala em rádio, o must dos anos 20. Se não podia prever as nuvens de terabytes diariamente transmitidas de um ponto a outro do planeta pela WEB, intuiu muito bem suas conseqüências. O teletrabalho – trabalho "radiado" para o escritório, como diria Lobato – desde há muito é um fenômeno em expansão. Hoje, qualquer trabalhador intelectual, desde que tenha um telefone por perto, pode enviar sua produção para qualquer canto do mundo, refugiado num chalé no Itatiaia ou em busca de solidão e deserto em Tamanrasset. Jornais impressos a milhares de quilômetros de suas redações há muito não constituem mais novidade.

Segundo o historiador francês Roger Chartier, a revolução hoje em curso é muito mais ampla que a de Gutenberg, de 1455, "pois transforma as próprias formas de transmissão do escrito. A passagem do livro, do jornal ou do periódico, como os conhecemos hoje, para a tela de computador, rompe com as estruturas materiais do texto escrito. A única comparação histórica possível é a revolução no início do cristianismo, nos séculos II e III, quando o livro da Antiguidade, em forma de rolo, deu lugar ao livro herdado por Gutenberg, o códice, com folhas e páginas reunidas em cadernos".

Ainda há neoluditas que preferem o cheiro do papel. Tudo bem. Muita gente deve ter sentido saudades do pergaminho após a prensa de Gutenberg. Mas papel é caro e precisa ser transportado. De minha parte, continuo lendo livros em papel. Mas que falta me faz o search quando leio um livro em papel. Se preciso buscar uma palavra qualquer, ou mesmo um hapax, em uma obra, eu o tenho ao alcance de um clique. No livro em papel, é um trabalho insano.

Há muita gente que ainda não percebeu que os tempos mudaram. A Internet tornou obsoletas, entre outras coisas, os colóquios literários. Para que ir a Paris ou Tóquio discutir literatura, se podemos fazê-lo sem sair de casa? Mais ainda: as comunicações de um colóquio precisam ser transcritas ao papel para que depois sejam lidas. Com a Internet, podem ser colocadas imediatamente em um site e as discussões podem ser feitas no mesmo site. Mas é claro que os PhDeuses não renunciarão tão cedo a viagens a Tóquio ou Paris.

Sem pretender ser profeta, me parece que o jornal em papel tem seus dias contados. Os jornais eletrônicos nos trazem hoje coisas que o jornal em papel não comporta, músicas e filmes. Eu os leio em papel só por vício. Mas qualquer dia me liberto da dependência.