¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, outubro 25, 2011
 
A PARANÓIA CEDE


Paris — Vista das margens do Sena, a América Latina efetivamente perdeu a década. A moda agora é o Leste europeu. As livrarias expõem esquecidos autores tchecos, poloneses, húngaros e romenos. Os cinemas ressuscitam cineastas proibidos. E as agências de turismo oferecem pacotes para todos os bolsos, para quem quiser dar uma última olhadela nos cacos do comunismo.

Quanto a Nuestra America, esta parece ser preocupação do milênio passado. Castro, se antes teve a sustentação da intelectuália parisiense, hoje é visto como o último caudilho do continente. La Lune et le caudillo: le rêve des intellectuels et le régime cubain, de Jeannine Verdés-Leroux, é um dos bons lançamentos que parece ser onipresente nas livrarias do Quartier Latin. Neste ensaio, a autora não se preocupa em desmitificar Castro propriamente, e sim os intelectuais parisienses que, cachimbando às margens do Sena, com a poltrona assestada na direção do rumo da História, apoiaram a ditadura cubana. E não faltam alguns respingos para o Che Guevara, cuja imagem de santo laico começa a ceder ante o perfil de um psicopata excitado com o cheiro de sangue.

É triste constatar que nós, brasileiros, só daqui a uns dez anos acabaremos chegando a estas conclusões. A propósito, olhando-se o mundo lado de cá, tem-se a nítida percepção de que o Brasil é o último país comunista da América Latina. Ou seja, país onde há uma predominância de uma ideologia obsoleta, que atrasou em um século ou mais os países do Leste.

Ora, direis leitores, e Cuba onde é que fica? Acontece que Cuba não é um país comunista. Lá, ao que tudo indica, só existe um comunista, já desesperado ante a perspectiva, cada vez mais próxima, de largar o osso do poder. “Todos os homens têm direito a tudo que pedem”, disse um dia Fidel a Sartre. “E se eles pedem a Lua” — quis saber Sartre, pensando certamente na peça Calígula, de Camus. “Se eles pedem a Lua” — respondeu o caudilho — “é porque dela necessitam”. Hoje, sabemos que os homens não pedem tanto. Querem algo mais singelo e mais ao alcance da mão, a liberdade.

Os intelectuais franceses estão confusos. Até setembro, outubro ou novembro do ano passado, havia resposta para todo e qualquer problema. De repente, as respostas todas se revelaram falsas, se não safadas. Bernard Henry Lévy, velho-novo-filósofo, tenta recuperar-se parafraseando Marx: “Sonhamos muito tempo em transformar o mundo, chegou a hora de interpretá-lo”. Talvez acabe chegando, depois de velho, a alguma conclusão inteligível.

A Europa Ocidental levará ainda alguns anos para mitigar a perplexidade que lhes foi brindada pelos primos pobres do Leste. O stalinismo impregnou de tal forma os cérebros ocidentais, a ponto de o Muro de Berlim ser considerado como um fato eterno e consumado, mesmo pelos mais obstinados anti-stalinistas. Percebem agora estes pensadores terem esquecido que a alavanca das grandes transformações sociais continua sendo a mesma de sempre: o desejo de liberdade, inerente a todo ser humano. E nisto em nada diferem de nós os homens do Leste.

Nas manchetes da imprensa parisiense, começa a mudar o vocabulário político. Pela primeira vez na França, ouço falar em fascismo eslavo. PC virou piada. Nanni Moretti, corrosivo cineasta italiano, diverte a fauna parisiense com seu último filme, La Palombella Rossa, datado do ano passado. Cenário, uma piscina. Personagem central, um deputado do PC italiano, jogador de waterpolo.

Ao tentar explicar em que consistiria ser comunista hoje, o deputado se deixa emaranhar em uma teia de lugares comuns que conduzem o público a um sorriso interior e amargo. Mas quando fala na “crise geral do capitalismo” nestes primórdios de 1990, não há na sala quem controle a gargalhada. Repetindo à exaustão os slogans do Partido, Moretti deixa claro que a peste que contaminou este século não passou de um amontoado de palavras vazias.

Sem Deus nem ideologia, o deputado italiano pede socorro à mamãe. Assim devem sentir-se, suponho, os últimos comunossauros tupiniquins. O filme, de 1989, revelou-se premonitório. Na França, só um cara-de-pau como Marchais, íntimo de Ceaucescu, consegue defender, ao lado de Castro, os ideais comunistas. “Não nos jogaremos nos braços da social-democracia, nem aceitamos o capitalismo”, insiste Marchais no L’Humanité, órgão oficial do PC francês, precisamente nestes dias em que os países comunistas dissolvem seus PCs e a Polônia cria um partido social-democrata.

Comentaristas angelicais pretendem que social-democracia é uma coisa, capitalismo é outra. Só cai neste conto quem não conhece Alemanha e países escandinavos. Ao clamar pela social-democracia, os sofridos habitantes do Leste em verdade reivindicam, eufemisticamente, um regime capitalista, com todas as suas — boas ou más — conseqüências. E o resto é conversa fiada.

Para os historiadores futuros, o século XX será visto como um vasto laboratório no qual ensaiou-se — às custas de milhões de cadáveres — uma utopia que não deu certo. “O pior fracasso do comunismo” — escreve Jean Daniel, do Nouvel Observateur — “foi ter associado o horror a um dos maiores sonhos da humanidade”.

Enfim, o sonho acabou, conforme expressão das carpideiras. Melhor diriam: a paranóia. Sempre vi algo de paranóico nestes senhores que, beneficiando-se das delícias do capitalismo, apoiavam-se incondicionalmente no regime que oprimia os cidadãos do Leste. Não por acaso, corre uma piada na Romênia pós-Ceaucescu.

Em Bucareste, nos dias do conducator, um cidadão entra em uma farmácia:

— Bom dia, camarada farmacêutico!

— Bom dia, camarada cliente!

— Camarada farmacêutico, você tem algo para a paranóia?

— Para a paranóia, camarada cliente, só tenho respeito.


Joinville, A Notícia, 25.02.90