¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, outubro 21, 2011
 
QUE DEVO LER PARA ENTENDER O PATO DONALD?



“Por que Platão é tão simples e o Scarinci tão complexo?”
Aníbal Damasceno Ferreira



Conta Mário Quintana que certa vez uma professora do interior perguntou-lhe que ler para entender Shakespeare. O poeta, simples e sábio, disse:

— Shakespeare, minha filha.

Nos últimos anos, têm surgido em livros e jornais sofisticadas análises das histórias em quadrinhos. Li há pouco um comentário sobre Mandrake onde se analisava a relação patrão-empregado e o binômio empregado-servo no universo ficcional de Falk & Davis, falava-se da saga dos super-heróis e finalizava com a frase do mais prolífico crítico de cinema nacional, que via em Mandrake o “nosso mágico de todos os sonhos”. Ainda recentemente, houve quem quisesse ver, numa inocente historinha de O Tico-tico, profundas implicações kafkianas e mais: o autor da historieta é apontado como precursor de Kafka. E se começamos a ler a bibliografia que está sendo lançada sobre o assunto, chegaremos à conclusão, diante dos complexos esquemas gráficos onde são dissecados os ontossemas, sintagmas e semiemas, que história em quadrinhos é algo muito profundo, fora do alcance do comum dos mortais. Já há mesmo quem veja em Chapeuzinho Vermelho implicações freudianas, e em Branca de Neve o evento do capitalismo e da propriedade privada (a posse exclusiva pelo príncipe) em substituição ao sistema primitivo e coletivista, a posse de Branca pelos sete anões.

Diante de tão doutas considerações, veiculadas por jornais e editoras de prestígio, imagino a inocente professora do interior perguntando-se, confusa:

— Que devo ler para entender o Pato Donald?

Recordo outra época em que esta epidemia intelectualóide grassava em Porto Alegre, em outro campo, a crítica de cinema. O western foi elevado à categoria de culminância da arte cinematográfica, o mocinho era o herói nietzscheano por excelência, um quebra-quebra num saloon não mais era um quebra-quebra num saloon, mas a “instauração do caos no cosmos que compunha a medida demencial do desencadeamento da desordem no mundo”. Os filmes de Maciste tinham implicações mito-teológicas e, no bandido, outrora representação do Mal, via-se a “figura destrágica do anti-herói”.

Um episódio da época vale a pena ser referido. Na noite de estréia de Alphaville, de Godard, no Rex, espectadores confusos perguntavam a um crítico porque determinado personagem, após receber duas balas na testa, reaparecia vivo nas cenas seguintes. Disse então o crítico a seus discípulos:

— Na obra godardiana vemos a destemporalização do tempo, o emprego do tempo psicológico referido por Bergson em L’Intuition créatrice e utilizado por Proust em À la Recherche du temps perdu, que nada tem a ver com o tempo cronológico, este independente de nossas subjetividades.

Soube-se mais tarde o que de fato havia ocorrido: o operador trocara os rolos do filme. A ejaculação mental do crítico foi fugaz. Durou uma noite.

O fenômeno não era local. Tinha suas raízes em Paris, mais precisamente nos Cahiers de Cinema. Como ainda acontece, os movimentos que surgem em Paris, dois anos após suas mortes, reaparecem no Brasil, onde pontificam por cinco a dez anos. (A propósito, quem mais fala ainda no nouveau roman?). Talvez a livraria Coletânea, em boa-fé, tenha sido responsável pelo vírus, pois era ali que os críticos tinham acesso aos virulentos Cahiers.

Na época, utilizando a mesma terminologia dos críticos, fiz uma análise dos personagens de Disney. A confusão intelectual era tamanha que durante uma semana a análise foi levada a sério. Um “quadrinhólogo” (idioma tolerante o nosso!) do centro do País procurou-me para incluir meu artigo numa antologia. Ainda não esqueço seu ar desolado quando lhe afirmei que não passava de uma piada.

O artigo teve efeitos saneadores: desde então, não mais se usou em Porto Alegre aquela abordagem pretensamente complexa, sofisticada e vazia, na crítica de filmes. Mas o vírus não foi extinto e ressurge agora na crítica (a que ponto chegamos!) de histórias em quadrinhos. Haja antibióticos.

Não existe ainda no Brasil uma associação de desenhistas, roteiristas ou enfim, de criadores de histórias em quadrinhos. Mas já há uma Associação dos Críticos de História em Quadrinhos. Aliás, isto é um sintoma típico da crítica. Mal surge, se associa, busca cúmplices. O criador está muito ocupado em seu trabalho, que é fundamentalmente individual, para dispor de tempo para fundar entidades. Não por acaso, recém agora se pretende fundar uma associação de cineastas gaúchos, quando já existiu, há uns sete ou oito anos, a Associação Gaúcha de Críticos de Cinema, de saudosa memória. Cinema, que é bom, nunca houve.

Não me parece ser difícil isolar este novo vírus. É o estruturalismo, mais um “mal gálico”.

O primeiro mal gálico que contaminou o Brasil foi a sífilis. Perguntei-me certa vez porque se usam até hoje, na fronteira, palavras como galica, galiqueira e engalicar. Foi lendo uma História da Prostituição, de Lujo Basserman, e as Memórias do Coronel Falcão, de Aureliano Figueiredo Pinto, que descobri a origem dos termos. A sífilis foi detectada pela primeira vez em uma guarnição militar francesa estabelecida em Nápoles. Os franceses chamavam a infecção de mal napolitano, enquanto que os italianos a chamavam de mal gálico. (Até que um médico com dotes de diplomata resolveu o impasse sugerindo a expressão mal venéreo). A palavra chegou a Porto Alegre e à fronteira através das profissionais francesas importadas pelos fazendeiros gaúchos, que estavam ancoradas no Clube dos Caçadores, que ficava no atual prédio da CEEE, vide o romance de Figueiredo Pinto.

Para a sífilis já existem antibióticos. Mas o estruturalismo ainda continua grassando impunemente. Seus agentes transmissores são bolsistas brasileiros contaminados nas promíscuas salas da Université de Paris, onde há pouco, um professor de comunicações — ó, gênio! — descobriu que a comunicação mais direta entre duas pessoas é a sexual. Mais direta inclusive que a palavra, carta, telefone, jornal, rádio ou TV. Assim é Paris.

Analisadas através dos métodos estruturalistas, tanto a obra de Guimarães Rosa como a de Vitor Matheus Teixeira, o Teixeirinha, adquirem dimensões grandiosas. Como também os quadrinhos.

Depois de uma rápida olhadela no livro Quadrinhos, de Cagnin, imagino a professora do interior sentindo-se esmagada e inculta ao ler uma Luluzinha ou Capricho, diante das infinitas possibilidades interpretativas que a história oferece.

A moda da crítica de quadrinhos apenas começou. O surto durará mais alguns anos. Até que um outro vírus substitua este. Pois os tempos de uma independência intelectual brasileira estão longe, parece-me.

Nossa época é de pobreza espiritual. O estruturalismo é apenas um sintoma desta pobreza. No fundo, em nada difere dos salões de arte moderna, dos desfiles de moda, dos psiquiatras para cães, da crônica social, do culto do medíocre. Os meios de comunicação multiplicaram milhões de vezes o gesto ou a palavra imbecil de um ídolo qualquer do momento. A fome de uma criança atirada na rua não sensibiliza ninguém. O seio esquerdo da sra. Ford deixa o mundo em suspense, os mais prestigiados jornais lhes abrem manchetes. Ninguém se preocupa em captar a magia dos poemas de Quintana, não vi ainda nenhum estudo sobre sua obra. Aliás, Mário é à prova de estruturalistas. Seus poemas são claros, não admitem interpretações.

No entanto, já existem eruditos estudos sobre os super-heróis americanos. Moacy Cirne está preocupadíssimo com as relações entre Mandrake e Lothar, relações que permitem qualquer interpretação, desde homossexualismo e racismo até colonialismo. Mas a pergunta fundamental — e a única que se impõe — não é feita: quantos milhões de dólares Mandrake transporta num passe de mágica para os industriais norte-americanos?

(Porto Alegre, Correio do Povo, 31/05/75)